Publicado em 1774, O desertor faz uma crítica satírica aos hábitos e comportamentos de parte da juventude do período, firmando-se como um dos textos mais importantes para o estudo da ilustração luso-americana no
século XVIII. Revela o otimismo do autor em relação à Reforma da Universidade de Coimbra como uma vitória das Luzes e da Ciência contra a escolástica. Ressalta na intencionalidade do autor, expressa na introdução teórica ao poema, que ele tinha a intenção de fazer de seu poema uma arma estética a favor da Reforma e isso se expressa na forma combativa como ele o estrutura.
É nesse poema que ficam claras as opções estéticas do poeta. Observa-se uma afeição ao Arcadismo que tinha como princípio a defesa da razão contra aos exageros das expressões vazias carregadas de metáforas e paradoxos inócuos do Barroco. Como bom adepto da Ilustração, Silva Alvarenga, em seus poemas, exalta o papel das ciências. Caracteriza-se pelo entusiástico apoio dado ao Marquês de Pombal pela civilização do ensino, revolucionária reforma educacional feita na Universidade portuguesa que destituiu os jesuítas das funções de administração e magistério até então exercidas. Essas reformas visavam extirpar da educação portuguesa as marcas deixadas pelo método peripatético utilizado nas escolas da Companhia de Jesus, instituição que era, desde meados do século XVI, a grande responsável pelo ensino português.
O desertor é um poema relativamente curto: narra, ao longo de cinco cantos – compostos de decassílabos brancos.
Poema na íntegra:
DISCURSO SOBRE O POEMA HERÓI-CÔMICO A imitação da Natureza, em que consiste toda a força da Poesia, é o meio mais eficaz para mover, e deleitar os homens; porque estes têm um inato amor à imitação, harmonia, e ritmo. Aristóteles, que bem tinha estudado a origem das paixões, assim o afirma no cap. 4° da Poética. Este inato amor foi o que logo ao princípio ensinou a imitar o Canto das Aves: ele depois foi o inventor da Flauta, e da Poesia, como felizmente exprimiu Lucrécio no liv. 1°, v. 1378. At liquidas avium voces imitarier ore Ante fuit multo, quam levia carmina cantu Concelebrare homines possent, aureisque juvare. Et Zephyri cava per calamorum sibila primum Agrestes docuere cavas inflare cicutas. O prazer, que nos causam todas as artes imitadoras, é a mais segura prova deste princípio. Mas assim como o sábio Pintor para mover a compaixão não representa um quadro alegre, e risonho, também o hábil Poeta deve escolher para a sua imitação ações conducentes ao fim que se propõe: por isso o Épico, que pertende inspirar a admiração, e o amor da virtude, imita uma ação na qual possam aparecer brilhantes o valor, a piedade, a constância, a prudência, o amor da Pátria, a veneração dos Príncipes, o respeito das Leis, e os sentimentos da humanidade. O Trágico, que por meio do terror, e da compaixão deseja purgar o que há de mais violento em as nossas paixões, escolhe ação, onde possa ver-se o horror do crime acompanhado da infâmia, do temor, do remorso, da desesperação, e do castigo: enquanto o Cômico acha nas ações vulgares um dilatado campo à irrisão, com que repreende os vícios. Qual destas imitações consegue mais depressa o seu fim, é difícil o julgar, sendo tão diferentes os caracteres, como as inclinações; mas quase sempre o coração humano, regido pelas leis do seu amor próprio, é mais fácil em ouvir a censura dos vícios, do que o louvor das virtudes alheias. O poema Chamado Herói-Cômico, porque abraça ao mesmo tempo uma e outra espécie de poesia, é a imitação de uma ação cômica heroicamente tratada. Este Poema pareceu monstruoso aos Críticos mais escrupulosos; porque se não pode (dizem eles) assinar o seu verdadeiro caráter. Isto é mais uma nota pueril, do que bem fundada crítica; pois a mistura do heróico, e do cômico não envolve a contradição, que se acha na Tragicomédia, onde o terror, e o riso mutuamente se destroem. Não obsta a autoridade de Platão referida por muitos; porque quando este Filósofo no Diálogo 3 da sua República parece dizer que são incompatíveis duas diversas imitações, fala expressamente dos Autores Trágicos, e Cômicos, que jamais serão perfeitos em ambas. Esta Poesia não foi desconhecida dos Antigos. Homero daria mais de um modelo digno da sua mão, se o tempo, que respeitou a Batracomiomaquia, deixasse chegar a nós o seu Margites, de que fala Aristóteles no cap. 4 da Poética, dizendo que este poema tinha com a Comédia a mesma relação que a Ilíada com a Tragédia. O Culex, ou seja de Virgílio, ou de outro qualquer, não contribui pouco para confirmar a sua antiguidade. Muitos são os poemas herói-cômicos modernos. A Secchia rapita de Tassoni é para os Italianos o mesmo que o Lutrin de Boileau para os Franceses, e o Hudibraz de Butler, e o Rape of the lock de Pope para os Ingleses. Uns sujeitaram o poema herói-cômico a todos os preceitos da Epopéia, e quiseram que só diferisse pelo cômico da ação, e misturaram o ridículo, e o sublime de tal sorte, que servindo um de realce a outro, fizeram aparecer novas belezas em ambos os gêneros. Outros omitindo, ou talvez desprezando algumas regras, abriram novos caminhos à sua engenhosa fantasia, e mostraram disfarçada com inocentes graciosidades a crítica mais insinuante, como M. Gresset no seu Ververt. Não faltou quem tratasse comicamente uma ação heróica; mas esta imitação não foi também recebida, ainda que a Paródia da Eneida, de Scarron, possa servir de modelo. É desnecessário trazer à memória a autoridade, e o sucesso de tão ilustres Poetas para justificar o Poema Herói-cômico, quando não há quem duvide que ele, porque imita, move, e deleita: e porque mostra ridículo o vício, e amável a Virtude, consegue o fim da verdadeira poesia. Omne tulit punctum, qui miscuit utile dulci. Horat. Poet. v. 342. Discit enim citius, meminitque libentius illud, Quod quis deridet, quam quod probat, ac veneratur. Horat. Epist. I. 1. 2. v. 262. | |
CANTO I Musas, cantai o Desertor das letras, Que, depois dos estragos da Ignorância, Por longos, e duríssimos trabalhos Conduziu sempre firme os companheiros Desde o loiro Mondego aos Pátrios montes. Em vão se opõem as luzes da Verdade Ao fim, que já na idéia tem proposto: E em vão do Tio as iras o ameaçam. E tu, que à sombra duma mão benigna, Gênio da Lusitânia, no teu seio De novo alentas as amáveis Artes; Se ao surgir do letargo vergonhoso Não receias pisar da Glória a estrada, Dirige o meu batel, que as velas solta, O porto deixa, e rompe os vastos mares De perigosas Sirtes povoados. Quais seriam as causas, quais os meios Por que Gonçalo renuncia os livros? Os conselhos, e indústrias da Ignorância O fizeram curvar ao peso enorme De tão difícil, e arriscada empresa. E tanto pode a rústica progênie! A vós, por quem a Pátria altiva enlaça Entre as penas vermelhas, e amarelas Honrosas palmas, e sagrados loiros, Firme coluna, escudo impenetrável Aos assaltos do Abuso, e da Ignorância, A vós pertence o proteger meus versos. Consenti que eles voem sem receio Vaidosos de levar o vosso nome Aos apartados climas, onde chegam Os ecos imortais da Lusa glória. Já o invicto Marquês com régia pompa Da risonha Cidade avista os muros. Já toca a larga ponte em áureo coche. Ali junta a brilhante Infantaria; Ao rouco som de música guerreira Troveja por espaços: a justiça, Fecunda mãe da Paz, e da Abundância, Vem a seu lado: as Filhas da Memória Digna imortal coroa lhe oferecem, Prêmio de seus trabalhos: as Ciências Tornam com ele aos ares do Mondego; E a Verdade entre júbilos o aclama Restaurador do seu Império antigo. Brilhante luz, paterna liberdade, Vós, que fostes num dia sepultadas Co bravo Rei nos campos de Marrocos, Quando traidoras, ímpias mãos o armaram Vítima ilustre da ambição alheia, Tornai, tornai a nós. Da régia stirpe Renasce o vingador da antiga afronta. Assim o novo Cipião crescia Para terror da bárbara Cartago. Possam meus olhos ver o Ismaelita Nadar em sangue, e pálido de susto fugir da morte, e mendigar cadeias; E amontoando Luas sobre alfanges Formar degraus ao Trono Lusitano. Dissiparam-se as trevas horrorosas, Que os belos horizontes assombravam, E a suspirada luz nos aparece. Tal depois que raivoso, e sibilante Sobre o carro da Noite o Euro açoita Os tardios cavalos do Bootes, E insulta as terras, e revolve os mares, Raia a manhã serena entre doiradas, E brancas nuvens: ri-se o Céu, e a Terra: Vento dorme, e as Horas vigilantes Abrem ao claro Sol a azul campanha. A soberba Ignorância entanto observa, E se confunde ao ver o próprio trono Abalar-se, e cair: o seu ruído Redobra os ecos nos opostos vales, E o Mondego feliz ao mar undoso Leva alegre a notícia, porque chegue Das suas praias aos confins da Terra. Ela abatida, e só não acha abrigo, E desta sorte em seu temor suspira. Verei eu sepultar-se entre ruínas O meu reino, o meu nome, e a minha glória; Depois de ser temida, e respeitada? Pobre resto de míseros vassalos Não há mais que esperar. Já fui rainha: Já fostes venturosos: não soframos As injúrias, que o vulgo nos prepara: Injúrias mais cruéis do que a desgraça. Deixemos para sempre estes terríveis Climas de mágoa, susto, horror, e estrago. Mostrai-me algum lugar desconhecido, Onde oculta repouse, até que possa Tomar de quem me ofende alta vingança. Mas onde, se um Prelado formidável, Esse Argos, que me assusta, vigilante Ao lugar mais remoto estende a vista? Monstros do cego abismo, em meu socorro Empenhai o poder do vosso braço; Que se entre os homens me faltar asilo, Ao triste vão dos ásperos rochedos, Onde o Tenaro escuro, e cavernoso Da morada sombria as portas abre, Irei chorar meus dias sem ventura: Irei... Assim falando misturava Gemidos, e soluços, que sufocam Dentro do peito a voz, e umedecia Co pranto amargo a face descorada. Mas logo, serenando o rosto aflito, Corre por entre sustos, e esperanças Ao caro abrigo do fiel Gonçalo. A sonolenta, a pigra Ociosidade Por esta vez deixou de acompanhá-la: E a lânguida Perguiça forcejando Pôde apenas segui-la com os olhos. Toma a forma dum célebre Antiquário Sebastianista acérrimo, incansável, Libertino com capa de devoto. Tem macilento o rosto, os olhos vivos, Pesado o ventre, o passo vagaroso. Nunca trajou à moda: uma casaca Da cor da noite o veste, e traz pendentes Largos canhões do tempo dos Afonsos. Dizem que o tempo da mais bela idade Consagrou às questões do Peripato. Já viu passar dez lustros, e experiente Sabe enredos urdir, e pôr-se em salvo. Entra por toda a parte, e em toda a parte É conhecido o nome de Tibúrcio. Gonçalo, que foi sempre desejoso Da mais bela instrução, lia, e relia Ora os longos acasos de Rosaura, Ora as tristes desgraças de Florinda, E sempre se detinha com mais gosto Na cova Tristiféia, e na passagem Da perigosa ponte de Mantible. Repetia de cor de Albano as queixas Chamando a Damiana injusta, ingrata; Quando Tibúrcio apaixonado, e triste Ralhando entrou. Que esperas tu dos livros? Crês que ainda apareçam grandes homens Por estas invenções, com que se apartam Da profunda ciência dos antigos? Morreram as postilas, e os Cadernos: Caiu de todo a Ponte, e se acabaram As distinções, que tudo defendiam, E o ergo, que fará saudade a muitos! Noutro tempo dos Sábios era a língua Forma, e mais forma: tudo enfim se acaba, Ou se muda em pior. Que alegres dias Não foram os de Maio, quando a estrada Se enchia de Arrieiros, e Estudantes! Ó tempo alegre, e bem-aventurado! Que fácil era então o azul Capelo Adornado de franjas, e alamares, O rico anel, e a flutuante borla, Honra, e fortuna, que chegava a todos! Hoje é grande a carreira, e serão raros Os que se atrevam a tocar a meta. Ah Gonçalo! Gonçalo! que mais vale Tirar coa própria mão no fértil Souto Moles castanhas do espinhoso ouriço! Quanto é doce ao voltar da Primavera O saboroso mel no loiro favo! Ó alegre, e famosa Mioselha Fértil em queijos, fértil em tramoços! Só lá de romaria em romaria Podes viver feliz, e descansado: Quem te obriga a levar sobre os teus ombros O desmedido peso, que te espera? | Não tenhas do bom Tio algum receio: Comigo irás: bem sabes quanto posso. Se te envergonhas de ser só, descansa; Fiel parente, amigo inseparável, Eu farei que abraçando o mesmo exemplo Muitos se apressem a seguir teus passos. Assim falava: quando um ar de riso Apareceu no rosto de Gonçalo. Tudo o que se deseja se acredita; Nem há quem o seu gosto desaprove. Ele porque já traz no pensamento Poupar-se dos estudos à fadiga Não vacila na escolha, e se aproveita Da feliz ocasião, que lhe assegura O meditado fim de seus desejos. Convocam-se os heróis, e deliberam Em pleno consistório, onde Gonçalo Silêncio pede, e assim a todos fala. Heróis, a quem uma alma livre anima, Que desprezando as Artes, e as Ciências, Ides buscar da Pátria no regaço, Longe da sujeição, e da fadiga Doce descanso, amável liberdade: Se algum de vós (o que eu não creio) ainda Tem na alma o vão desejo dos estudos, Levante o dedo ao alto. Uns para os outros olharam de repente, e de repente Rouco, e brando sussurro ao ar se espalha: Qual nos bosques de Tempe, ou nas frondosas Margens, que banha o plácido Mondego, Costuma ouvir-se o Zéfiro suave, Quando meneia os álamos sombrios. Nenhum alçou a mão, e a Ignorância Pareceu consolar-se, imaginando Sonhadas glórias de futuro império. Dispõe-se a companhia, e se aparelha Para partir antes que o Sol desate Sobre a Terra orvalhada as tranças d'oiro. Tibúrcio tudo apronta. Mas Janeiro Loquaz, traidor, doméstico inimigo Voa de casa em casa publicando Da forte esquadra a próxima partida. Guiomar, velha que há muito que insensível Às delícias do amor, aferrolhando Emagrece nos míseros cuidados Da faminta ambição, e é na Cidade Uma ave de rapina, que entre as unhas Leva tudo o que encontra aos ermos cumes Da escalvada montanha, onde a festejam Coa boca aberta os ávidos filhinhos: Triste agora, e infeliz ouve, e se assusta Das notícias cruéis, que o Moço espalha. Ó Ama desgraçada! Ó dia infausto! Agora que esperava mais sossego Principiam de novo os meus trabalhos! Estas, e outras palavras arrancava Do peito descontente, enquanto a Filha Amorosa, e sagaz estuda os meios, Com que possa deter o ingrato amante: Faz ajuntar de partes mil à pressa Cordões, e anéis, e a pedra reluzente, Que os olhos desafia: os seus cabelos, Que desconhecem o toucado, empasta Coa cheirosa pomada: a Mãe se lembra Da própria mocidade, e lhe vai pondo Com a trêmula mão vermelhas fitas. Simples noiva da aldeia, que ao mover-se Teme perder o desusado adorno, Nunca formou mais vagarosa os passos. Narcisa chega entre raivosa, e triste, E fingindo esquecer-se da mantilha Para mostrar-se irada, desta sorte Em alta voz lhe fala. Será certo Que pertendes fugir, e que me deixas Infeliz, enganada, e descontente? Assim faltas cruel, pérfido, ingrato Dum longo amor aos ternos juramentos? Não disseste mil vezes... mas que importa Que os meus males recorde? enfim, perjuro, As tuas vãs promessas me enganaram. Justiça pedirei ao Céu, e ao Mundo: O mundo tem prisões, o Céu tem raios. Falava; e o herói, que arrasta ainda Dum incômodo amor os duros ferros, Parece vacilar; quando Tibúrcio Dá conselhos a um, a outro ameaça Pondo irados os olhos em Narcisa. Diz-lhe que em vão suspira, que em vão chora E que sempre tiveram as mulheres Para enganar aos míseros amantes As lágrimas no rosto, o riso na alma. Gonçalo então, que o seu dever conhece, Dá provas de valor, e de prudência. Ouve Narcisa bela, (lhe dizia) Serena a tua dor, e os teus queixumes: O teu pranto me move, injusto pranto, Que o meu constante amor de ingrato acusa: Sossega: a nova herança dum morgado É quem me chama, a ausência será breve. Tempo depois virá que em doces laços Eterno amor as nossas al mas prenda, E então farás tibornas e magustos. Nem sempre cobre o mar a longa praia: Nem sempre o vento com furor raivoso Do robusto pinheiro o tronco açoita. Acaba de falar, e lhe oferece A leve bolsa, que Narcisa aceita Como penhor sincero de amizade, Bolsa, que deve ser na dura ausência Breve consolação de tristes mágoas. O experto Amigo, que se mostra em tudo Companheiro fiel, com os olhos tristes, Pondera os longos, e ásperos caminhos: Lembra funestas noites de estalagem, E adverte em vão, que ao menos por cautela Deve fazer-lhe a bolsa companhia. Deixando enfim inúteis argumentos Remete a decisão ao próprio braço. Não se esquecem das unhas, nem dos dentes, Armas, que a todos deu a Natureza. Ouvem-se pela casa em som confuso As troncadas injúrias, e os queixumes. Assim dois cães, se o hóspede imprudente Lança da mesa os ossos esburgados, Prontos avançam; duma, e doutra parte Se vê firme o valor: mordem-se, e rosnam; Mas não cessa a contenda. Amigo, e amante, Que farias, Gonçalo, em tanto aperto? Concorre a plebe, e o férvido tumulto Vai pelas negras Fúrias conduzido Despertando nos peitos a desordem. Ninguém sabe por quê, mas todos gritam. Já voam as cadeiras pelos ares: Pedras, e paus de longe se arremessam. E se a cândida Paz com rosto alegre Serenou as desgraças deste dia, Os teus dentes, intrépido Gonçalo, Viste voar em negro sangue envoltos. Torna alegre Narcisa, e cinco vezes Abriu a bolsa, e numerou a prata: Fez diversas porções, que num momento Tornou a confundir: não doutra sorte O menino impaciente, e cobiçoso, Quando alcança o que há muito lhe negavam, Repara, volta, move, ajunta, espalha, E neste giro o seu prazer sustenta. Entanto a mãe, que já por experiência Os enganos conhece mais ocultos, Busca novos pretextos de vingança Fingindo torpes, e horrorosos crimes, E espera ouvir gemer em poucas horas O mancebo infeliz em prisão dura. Mas Rodrigo, que ouviu o rumor vago, À pressa chega, e desta sorte fala. Que desgraças te esperam! foge, foge Gonçalo, enquanto há tempo: gente armada Vem logo contra ti. Guiomar convoca Todo o poder do mundo: um só momento Não percas, caro amigo; os companheiros Com alvoroço esperam. Ah deixemos, Deixemos duma vez estas paredes, Onde co próprio sangue escrita deixas De teu trágico amor a breve história. É já outro o Mondego: a liberdade Destes campos fugiu, e só ficaram A dura sujeição, e o triste estudo. Enfim hei de apartar-me desta sorte? Ó sempre tristes, sempre amargos sejam Os teus últimos dias, velha infame. Gonçalo, sim, chorando, monta, e parte. |
CANTO II Com largo passo longe do Mondego Alegre a forte gente caminhava. Gonçalo excede a todos na estatura, Na força, no valor, e na destreza. Sobre um magro jumento se escarrancha Tibúrcio, e já dum ramo de salgueiro Desata ao Norte fresco, que assobia, Por vistoso estandarte um lenço pardo. Cosme infeliz, e sempre namorado Sem ser correspondido, vai saudoso, Ama, e não sabe a quem: vive penando, E se consola só porque imagina Que tem de conseguir melhor ventura. Rodrigo, que de todos desconfia, É de índole grosseira, e gênio bruto, Não conhece os perigos, nem os teme: Melancólico sempre, vai por gosto Viver na choça, aonde foi criado. Qual o Tatu, que o destro Americano Vivo prendeu, e em vão depois se cansa Por fazê-lo doméstico, que sempre Temeroso nas conchas se recolhe E parece fugir à luz do dia. Também vinha Bertoldo, e traz consigo Carunchosos papéis por onde afirma Vir do sétimo Rei dos Longobardos. Grita contra as riquezas, a Fortuna, Segundo o que ele diz, não muda o sangue: Pisa com força o chão, e empavesado De ações, que ele não pode chamar suas, Aos outros trata com feroz desprezo. Iracundo Gaspar, que te enfureces No jogo, e quando perdes não duvidas Meter a mão à ferrugenta espada, Tu não ficaste: 'as noites sobre os livros Não queres suportar, porque não temes Da já viúva mãe as frouxas iras. Nem tu, Alberto alegre, e desejado Das vistosas funções das romarias, Que és vivo, pronto, e ágil, e nos bailes Tens fama de engraçado, e garganteias Coa viola na mão trocando as pernas. Os que aprendem o nome dos autores, Os que lêem só o prólogo dos livros, E aqueles, cujo sono não perturba O côncavo metal, que as horas conta, Seguiram as bandeiras da ignorância Nos incríveis trabalhos desta empresa. O Sol já sobre os campos de Anfitrite Inclina o carro, e as nuvens carregadas Importunos chuveiros ameaçam; Quando a velha estalagem os recebe. Mesa de tosco pinho se povoa De negras azeitonas, e salgado Queijo, que estima a gente que mais bebe. Dum lado, e doutro lado se levantam Pichéis, e copos, em que o vinho abunda. Corriam para aqui desafiados Rodrigo, o triste, e o glutão Tibúrcio. Este instante fatal é que decide Da dúbia sorte dos heróis cobrindo Um de eterna vergonha, outro de glória. A feia Noite, que aborrece as luzes, Desce dos altos montes com mais pressa Por ver este combate, e afugentada Pela sombria luz duma candeia De longe observa o novo desafio. Um, e outro ocupando as mãos, e a boca Avidamente a devorar começa. Assim esse animal grosseiro, e pingue, Que de alpestres bolotas se sustenta, À pressa come, e tendo uma nos dentes, Noutra tem o desejo, e noutra a vista. Rodrigo quase certo da vitória Coas mãos ambas levanta um grande copo, Copo digno de Alcides, e à saúde De todos os famosos Desertores De uma vez esgotou: então Tibúrcio Cheio de nobre ardor, fechando os olhos Toma um largo pichel, e assim lhe fala. Vasilha da minha alma, tu que guardas A alegria dos homens no teu seio, E tu, filho da cepa generoso, Se estimas, e recebes os meus votos, Derrama sobre mim os teus encantos. Já tinha dito muito: e enquanto bebe Voa a cega Discórdia, que se nutre De sangue, e de vingança, e sobre os copos Três vezes sacudiu as negras asas. Viam-se já nos lívidos semblantes A raiva sanguinosa, a má tristeza. A Noite, a quem o Acaso favorece, Estende a fusca mão, e a luz abafa. Veloz passa o furor de peito em peito, Perturba os corações, e inspira o ódio. Só tu, Gonçalo, descrever puderas Os terríveis estragos desta noite, Tu, que posto debaixo duma banca (Por não manchar as mãos no sangue amigo) Sentiste pela casa, e pelos ares Rolar os pratos, e tinir os copos. Range os dentes Gaspar, e pelo escuro Não acerta coa espada, nem coa porta: Quando Ambrósio, que tinha envelhecido Da Estalagem na mísera oficina, Coa candeia na mão assim falava. É crível, que entre vós jamais se encontre Um gênio dócil, sério, e moderado? Isto deveis às letras? respondei-me, Ou insultai também os meus cabelos | Da triste, e longa idade embranquecidos. Julgais acaso, que o saber se infunde Deixando o vosso nome assinalado Pelos muros, e portas da Estalagem? Ó néscia mocidade! é necessário Muito tempo sofrer, gastando a vista Na contínua lição, e sobre os livros Passar do frio Inverno as longas noites. E quando já tivésseis conseguido De tão bela carreira os dignos prêmios, Muito pouco sabeis, se inda vos falta Essa grande Arte de viver no mundo, Essa, que em todo o estado nos ensina A ter moderação, honra, e prudência. Eu também já na flor da mocidade Varri coa minha capa o pó da sala: Eu também fui do rancho da carqueja, Digno de fama, e digno de castigo. Era então como vós. Jamais os livros Me deveram cuidado, e me alegrava Das noturnas empresas, dos distúrbios: Os dias se passavam quase inteiros Nos jogos, nos passeios, nas intrigas, Que fomentam os ódios, e as vinganças. Por isso estou no seio da miséria: Por isso arrasto uma infeliz velhice Sem honra, sem proveito, sem abrigo. Tempo feliz da alegre mocidade! Hoje encurvado sobre a sepultura Eu choro em vão de vos haver perdido! Assim suspira, e geme, e continua: Conservai sempre firme na memória Dum velho desgraçado o triste exemplo, E aprendei a ser bons, que a vossa idade As indignas ações não justifica. Mas se vós desprezais os meus conselhos, Nunca gozeis o prêmio dos estudos: Aflições, e trabalhos vos oprimam, Enquanto o mar das índias vos espera. Então Gaspar, tomando o caso em brio, Aceso de ira com valor responde, Traça o capote, e tira pela espada. O velho grita, e foge: às suas vozes De rústicos um povo se enfurece, E toma as armas, e bradando avança. Qual nos imensos, e profundos mares O voraz Tubarão entre o cardume De argentadas Sardinhas: elas fogem, Deixam o campo, e nada lhe resiste; Assim Gonçalo, a quem já todos temem, Faz espalhar a turba, que o rodeia, E só deixa a quem foge de encontrá-lo. Gaspar, que o rosto nunca viu ao medo, A todos desafia, e não perdoa Duma oliveira ao carcomido tronco, Que ele julga broquel impenetrável, Vendo estalar da sua espada a folha. Da noite a densa névoa favorece. Receosos de nova tempestade, Salvam as vidas os Heróis fugindo Por entre o mato espesso. Ouvem ao longe Da vingativa plebe a voz irada. À clara luz das pinhas resinosas Aparecem as foices, e aparecem Chuços, cacheiras, trancas, e machados. Levanta-se o clamor; e a crua guerra, Que o sangue dos mortais derrama, e bebe, Gira por toda a parte, e move as armas. Entanto a valerosa companhia Amparada da sombra feia, e triste Voa por longo espaço sobre as asas Do pálido terror. Não doutra sorte Rasos xavecos de piratas Moiros, Quando aos ecos do bronze fulminante Vêem tremular as vencedoras Quinas sobre a possante Nau, que oprime os mares, Fogem à vela, e remo, e não descansam Sem ter beijado as Argelinas praias. Ouvem-se então diversos sentimentos. Chora Gaspar de se não ter vingado, E ainda aqui colérico assevera Que a não faltar-lhe a espada não fugira. Espada, que ao romper as linhas d'Elvas, Se dos velhos Avós não mente a história, Abriu de meio a meio um Castelhano. Teme Bertoldo, que o encontre o Povo; E no meio daquela escuridade Chega-se aos mais com pânico receio. Cosme quase insensível aos perigos, E aos amargos momentos desta noite, Aproveita o silêncio, o sítio, a hora Para chorar saudades sem motivo. Só Gonçalo pensava cuidadoso Em salvar os aflitos companheiros. Assim o astuto assolador de Tróia, Quando os Gregos heróis ouviu cerdosos Grunhir nos bosques da encantada Circe, Ou quando viu a detestável mesa Na vasta cova do Ciclope horrendo. Onde estarás fiel, e caro amigo! (Dizia o condutor da stulta gente) Se tu me faltas como irei meter-me Nas mãos dum Tio rústico, inflexível? Voltarei? mas ó Céus! quem me assegura Que essa velha cruel, nefanda harpia Não tenha urdido algum funesto engano? E se o Povo indignado, e ofendido Nos vem seguindo, e ao surgir da Aurora Neste inculto deserto... Céu piedoso, Longe, longe de nós tão graves danos. Gonçalo assim falava, e vigilante Tristes horas passou, até que o dia Apareceu entre rosadas nuvens Sobre as altas montanhas do horizonte. |
CANTO III A Fama sobre o carro transparente, Que arrastam ao través do espaço imenso O sonoro Aquilon, e o veloz Austro, Cantava o caro nome, a imortal glória Do Augusto Pai do Povo. Entre milhares De ações dignas dum Rei, Europa admira O soberbo Edifício levantado, Que o saudoso Mondego abraça, e adora: Edifício, que o tempo doravante Vê de longe, rodeia, teme, e foge: Que sustenta em firmíssimas colunas Da ciência imortal o Régio Trono. Se longe da feroz barbaridade Os olhos abre a forte Lusitânia, Grande Rei, esta ação é toda vossa. Entanto a Fama heróica vão seguindo As velozes, e incógnitas notícias, Que trazem, e que levam os sucessos De país em país, de clima em clima. Elas voam em turba, enchendo os ares Dos ecos dissonantes, a que atendem Crédulas velhas, e homens ociosos. Qual no fértil Sertão da Ajuruoca Vaga nuvem de verdes Papagaios, Que encobre a luz do Sol, e que em seus gritos É semelhante a um povo amotinado: Assim vão as Notícias, e estas vozes Pelo campo entre os rústicos semeiam. Gente inexperta, alegre, e sem cuidados, Fero esquadrão, que os vossos campos tala, Vem destruindo as terras, e os lugares. O povo indócil, cego e receoso, Que as funestas palavras acredita, Toma os caminhos, e os oiteiros cobre. Por onde irás, intrépido Gonçalo, Que escapes ao furor da plebe armada? Mas já os desgraçados companheiros Desciam por incógnitas veredas Para o fundo dum vale cavernoso, Que o Zêzere veloz lavando insulta Coas turvas águas do gelado inverno. Há um lugar nunca dos homens visto, Na raiz de dois montes sobranceiros. Suam as frias, e musgosas pedras, Que dos altos cabeços penduradas Ameaçam ruína há tempo imenso. Jamais do Cão feroz o ardor maligno Desfez a neve eterna destas grutas. Árvores, que se firmam sobre a rocha, Famintas de sustento à terra enviam As tortas, e longuíssimas raízes. Pendentes caracóis coa frágil concha Adornam as abóbadas sombrias. Neste lugar se esconde temerosa A Noite envolta em longo, e negro manto Ao ver do Sol os lúcidos cavalos: Fúnebre, eterno abrigo aos tristes mochos, Às velhas, às fatídicas corujas, Que com medonha voz gemendo aumentam O rouco som do rio alcantilado. Rufino por seu mal sempre extremoso, E sempre escarnecido, suspirando Aqui se entrega ao pálido ciúme, Dum puro amor ingrata recompensa. Contam que nestas hórridas cavernas De míseras angústias rodeado, Vinha exalar os últimos suspiros Queixando-se de Amor, e da Fortuna. Entre os braços do sono repousava Este infeliz já de chorar cansado; Quando a inquieta Ignorância, que se aflige, De ver nestas montanhas escabrosas Os tímidos amigos, em que funda De novo império a única esperança: Por que Rufino os acompanhe, e guie À pingue, e suspirada Mioselha, Que é de tantos heróis Pátria famosa, Finge o rosto da bela Dorotéia, Dorotéia a mais nova, a mais humana De quantas filhas teve o velho Amaro. Ela a roca na cinta, as mãos no fuso Em sonhos lhe aparece, e mais corada, Que a rosa na manhã da Primavera, A falar principia. Se até agora Ingrata me mostrei a teus amores, Se inconstante, e perjura me chamaste, Dá-me nomes mais doces, e ouve atento Duma alma amante a confissão sincera. Sempre te amei, e espero ver unidos Os nossos corações em fortes laços Do casto amor, que o Céu não desaprova. Mas eu sem nada mais, que a lã, que fio, Tu rico só de afetos, e palavras, Onde iremos, que a sórdida miséria Não seja em nossos males companheira? Vai-te, e longe de mim segue a ventura, Que firme te hei de ser em toda a idade. Do velho Afonso o triste, e pobre filho, Pela dura madrasta afugentado, Também deixou a suspirada Pátria, E veio em poucos anos o mais rico Dos bens imensos, que o Brasil encerra. Vês tu quanto cresceu, que não cabendo No paterno casal, ergue as paredes Até chegar ao Céu, que testemunha | A ditosa união com que ele paga O firme amor da venturosa Ulina? Vai pois, Rufino meu, que muitas vezes Muda-se a terra, e muda-se a Fortuna. Assim falando os braços lhe oferece. Ó que instante feliz, se Amor perverso, Dos últimos favores sempre avaro, Não firmasse esta sombra de ventura Sobre as asas de um sonho lisonjeiro! Desperta o triste, e desgostoso amante, Vós em mim achareis amigo, e guia: Que pode dar alguma vez socorro Um desgraçado a outro desgraçado. Duros casos de amor me conduziram A acabar nesta gruta os tristes dias; Mas hoje volto por feliz presságio A tentar noutra parte a desventura. Acaba de falar movendo os passos Pelo torcido vão das nuas pedras. Todos o seguem com trabalho imenso. Depois que largo tempo caminharam Por ásperas montanhas, aparecem Ao longe a estrada, e o lugar vizinho. Qual a nau sofredora das tormentas, Que, depois de tocar o porto amigo, Sente fugir-lhe as arenosas praias, E dos hórridos ventos açoitada Volta a lutar co pélago profundo: Assim Gonçalo, quando ver espera Tranqüilo fim de míseros trabalhos, O povo o cerca, e dos confusos gritos As montanhas ao longe retumbaram. Vós ó Musas, dizei como a Discórdia Com o negro tição, que acende os peitos, Mostra o rosto de sangue, e pó coberto, Seguindo os passos do homicida Marte. Aqui não aparecem refulgentes Escudos d'aço, e bronze triplicado: Não assombram a testa dos guerreiros Flutuantes penachos, que ameaçam, Como tu viste, ó Tróia, ante os teus muros; Mas o valor intrépido aparece A peito descoberto. O povo armado De choupas, longos paus, e curvas foices, É semelhante a um bosque de pinheiros, Que o fogo devorou, deixando nuas As elevadas pontas. Animoso Dispõe Gonçalo a forma de batalha Posto na frente: à sua voz a um tempo Todos avançam, todos se aproveitam Das perigosas, e terríveis armas, Que o terreno oferece em larga cópia. Voa a cega Desordem, e aparece No meio do combate. Por um lado Gaspar se opõe arremessando pedras Com força tal, que atroam os ouvidos. Gonçalo doutra parte invicto, e forte Abre co ferro agudo amplo caminho. Já pendia a balança da vitória Contra a tímida gente, que se espalha; Quando chega atrevido Brás, o forte. (Gigante Ferrabrás lhe chama o povo Pela enorme estatura, e força incrível) Ergue a pesada maça sem trabalho, Qual nos montes de Lerne o fero Alcides: Gonçalo evita a morte com destreza: Ele renova os formidáveis golpes; Mas o irado mancebo ao desviar-se Tropeça, e cai. Neste arriscado instante Serias morto, intrépido Gonçalo, Se Gaspar cum rochedo áspero, e rombo Não atalhasse do inimigo a fúria, Quebrando-lhe com golpe repentino Ambas as canas do direito braço. Rangem os ossos, e a terrível maça Caindo sobre a terra ao longe soa. Torna a juntar-se a fugitiva plebe, E o prudente Gonçalo, que deseja Mostrar o seu valor noutros perigos, Finge-se morto: a turba irada o pisa, Mas ele não se move. Contra todos Então Gaspar em cólera se acende: Ameaça, derriba, ataca, e fere; Até que já sem forças, rodeado Vê de seus companheiros os opróbrios. Soa nas costas dos heróis valentes O duro azambujeiro, e são levados Ao som terrível de insultantes gritos Para a escura prisão, que os esperava. Gonçalo, o bom Gonçalo as mãos atadas, Os olhos para o chão, porque era terno Não refreou o compassivo pranto. A par dele Bertoldo em vão lamenta A falta de respeito, que devia Rústica plebe ao neto de Alarico. Com vagaroso passo todos marcham, Como as ovelhas por caminho estreito. Tal depois da ruína de um Quilombo Vem a indômita plebe da Etiópia, Quando rico dos loiros da vitória O velho Chagas sempre valeroso Cobre o fuzil da pele da Guariba, E forra o largo peito cos despojos Da malhada Pantera, e do escamoso Jacaré nadador, que infesta as águas. |
CANTO IV Tibúrcio, que nas guerras da estalagem Soube abrandar os inimigos peitos, Pondo-se como em êxtase profundo Com os olhos no Céu, e as mãos no peito, Vem a empenhar a força das intrigas. Que não farás, intrépida Ignorância, Por libertar os tristes prisioneiros! Tem o cuidado das ferradas portas Amaro vigilante, inexorável; Mas crédulo, e medroso; e tem ouvido Não sem horror pela calada noite Grasnar nos ares, e mugir nos campos Feias bruxas, e vagos lobisomens. Com ele o Antiquário se acredita Por um devoto, e santo Anacoreta, Que passa os breves dias deste mundo Entre os rigores duma austera vida. Amaro, que se fia de aparências, Para nutrir o frágil penitente Vai degolando os patos, e as galinhas. Entanto (quem dissera!) a própria filha Inocente era o móvel deste enredo, Seu nome é Dorotéia, e no semblante Gênio se lhe descobre inquieto, e leve. E como estes momentos preciosos Não se devem perder, depois que a fome Afugentou do estômago vazio, Com branda voz em tom de profecia Humildade afetando assim começa. Pois tanta caridade usais comigo, O Senhor, que reparte os seus tesoiros, Vos encherá de mil prosperidades. A vossa filha... mas convém que eu cale Os segredos, que o Céu me comunica, Inda vereis nascer entre riquezas Os venturosos netos, doce arrimo Aos fracos dias da caduca idade. O velho então coas lágrimas nos olhos Assim falou: Ó filho abençoado, Que pela débil voz já me pareces Habitador do Céu, quanto consolas As pecadoras cãs, que te estão vendo! Assim talvez seria o meu Leandro, Se as bexigas em flor o não roubassem! Dez anos tinha, quando a morte avara Cortou coa dura mão seus tenros dias. Então suspira, e segue passo a passo A longa enfermidade; e enquanto narra Aparece Marcela, conhecida Entre todas as velhas por mais sábia Em penetrar olhando para os dedos Tudo quanto já dantes lhe contaram. Sobre pequeno pau, a que se encosta, Ela vem debruçada pouco a pouco, O semblante enrugado, os olhos fundos, Contra o nariz oposta a barba aguda: Os dous últimos dentes balanceiam Co pestífero alento, que respira. Em segredo lhe mostra Dorotéia A esquerda mão por que ela decifrasse As confusas palavras de Tibúrcio. Ela observa, e depois de mil trejeitos Franzindo a testa, arcando as sobrancelhas, Com voz trêmula, e fraca assim dizia. Ó que grande ventura o Céu te guarda! Por esposo terás um cavalheiro Que te ama, e te deseja. Mas ai triste! Em vão chora infeliz o terno amante Nessa escura prisão desconhecido Por casos de fortuna. Criai filhos, Ó desgraçadas mães, para que um dia Longe de vós padeçam mil trabalhos! Aqui suspira a boa velha, e chora. Duas vezes começa, e depois fala. O seu nome é Gonçalo: é rico, e nobre, E mancebo gentil, robusto, e loiro. Estas, e outras palavras lhe dizia, E Dorotéia já se sente amante, Excogitando os mais seguros meios De abrir a porta, e dar-lhe a liberdade. Na molesta prisão o novo engano, De imperceptível arte pronto efeito, Sabe o Herói, e assim consigo fala. Ó amigo tão raro como a Fênix, Que podendo deixar-me entre estes ferros, Vens encher-me de alívios, e esperanças! Valentes expressões em crespa frase, Que ao Alívio de Tristes rouba a glória, Pensando, felizmente ressuscita Aquelas hiperbólicas finezas, Que em seus escritos prodigou Gerardo. Num pequeno papel como convinha A triste, e desgraçado prisioneiro, Viu Dorotéia as letras amorosas, Que os ditos confirmaram de Marcela, E dois grandes presuntos, que jaziam Intactos na despensa do bom velho, Vão levar a resposta acompanhados Do roxo néctar, que dissipa os males. Mensageira fiel então afirma, Que virá Dorotéia abrir-lhe as portas Nas horas, em que o plácido sossego Dos cansados mortais os olhos cerra. Gonçalo espera tímido, e confuso Vem-lhe à memória o seu antigo afeto; Qual leve sombra: escuta, arde, e deseja Sentir no coração novas cadeias. Já com a fria mão a noite escura Entre o miúdo orvalho derramava Papoilas soporíferas, que inspiram O brando sono, e o doce esquecimento. Reina o vago silêncio, que acompanha De amor furtivo os trágicos transportes. Gonçalo então, cansada a fantasia Sobre os meios, e os fins de seus projetos, Pouco a pouco se esquece, e pouco a pouco Cerra os olhos, boceja, dorme, e sonha. Quando voa do leito, onde deixava Nos braços do Descanso ao Pai da Pátria A brilhante Verdade, e lhe aparece Numa nuvem azul bordada d'oiro. A Deusa ocupa o meio, um lado, e outro A severa justiça, a Paz ditosa. Benignos Céus, enchei meus puros votos: Fazei que esta celeste companhia, Como do terno Avô rodeia o trono, De seu Neto imortal orne a Coroa. Gonçalo viu, e pondo as mãos nos olhos Receia, e teme de encarar as luzes. Abre os olhos, mortal, (assim lhe fala Do claro Céu a preciosa filha) Abre os olhos, verás como se eleva Do meu nascente Império a nova glória. Esses muros, que a pérfida Ignorância Infamou temerária com seus erros, Cobertos hão de ser em poucos dias Com eternos sinais de meus triunfos. Eu sou quem de intrincados labirintos Pôs em salvo a Razão ilesa, e pura. Eu abri aos mortais os meus tesoiros: Fiz chegar aos seus olhos quanto esconde No seio imenso a fértil Natureza. Pode uma destra mão por mim guiada Descrever o caminho dos Planetas: O mar descobre as causas do seu fluxo: A Terra... mas que digo? Que ciência Não fiz tornar às margens do Mondego, Ou dentre os braços da Latina Gente, Ou dos belos países, cujas praias O mar azul por toda a parte lava? Se são firmes por mim o Estado, a Igreja, Se é no seio da paz feliz o Povo, Dizei-o vós, ó Ninfas do Parnaso. Ilustres, imortais, vós que ditastes As poderosas leis a vez primeira, Vós, que ouvistes da lira de Mercúrio Os úteis meios de alongar a vida. Eu vejo renascer um Povo ilustre Nas armas, e nas letras respeitado. seu nome vai já de boca em boca A tocar os limites do universo. pacífico Rei lhe traz os dias Dignos de Manuel, dignos de Augusto. E tu enquanto a Pátria se levanta Sacudindo os vestidos empoados Coa cinza vil de um ócio entorpecido: Enquanto corre a mocidade alegre A colher loiros ávida de glória, Serás o frouxo, o estúpido, o insensível? Sacrificas o nome, a honra, a Pátria Aos moles dias de uma vida escura? Cego, errado mortal, vê que te enganas. Disse: e cerrada a nuvem luminosa, Estremece Gonçalo: foge o sono: Por toda a parte lança incerto a vista, Busca assustado, mas já nada encontra. As mesmas impressões em seus sentidos Vivas imagens pintam, e não sabe Se então dormia, ou se inda agora sonha. Sente a suave força da Verdade; Mas recusa abraçá-la. Triste sorte D'alma infeliz, que ao erro se acostuma! Entanto sem receio o Velho dorme, | E a filha vem as sombras apalpando Com as chaves na mão: e quantas vezes Segue, vacila, e pára, e lhe parece Ouvir a voz do Pai: escuta, e treme; Move os passos, tropeça, e ao ruído Acorda Amaro, e grita. Ela se apressa, E torna a tropeçar. Aqui Tibúrcio Em casos repentinos pronto, e destro Em um lançol se embrulha, e corre ao leito, Onde jazia o Velho espavorido, Que cuida que vê bruxas, e fantasmas: Então lhe diz em tom medonho. Ó filho, Ingrato filho, que de um Pai te esqueces! Que mal, que mal cumpriste os meus legados! Hoje comigo irás... Ao Velho o medo Corre as medulas dos cansados ossos: A voz lhe falta, eriça-se o cabelo. Entanto as portas Dorotéia abrindo (Amor a fez intrépida) abraçava O prometido esposo: ele se apressa, Acorda os miserandos companheiros, Que se alegram deixando solitárias As vagas sombras da prisão funesta. Passa o resto da noite entre temores Amaro, quanto pode o prejuízo! Apenas matizava a branca aurora Da Tíria cor o véu açafroado, Quando o Velho ao través da luz escassa Viu abertas as portas. Dorotéia, Dorotéia onde estás? Assim clamava, E entregue à sua dor consulta os olhos Do profeta, que pronto a pôr-se em marcha Com rosto de candura, e de inocência Brandamente o consola. O Céu, Amigo, Tudo faz por melhor, e muitas vezes Com trabalhos cruéis aos bons aflige. Disse, e deixando ao Pai desconsolado, Caminha na esperança de encontrar-se Co valente esquadrão dos fugitivos. Sol já com seus raios luminosos Tinha roubado às folhas dos arbustos frio gelo do noturno orvalho. Eis à sombra de fúnebre arvoredo Rufino, o melancólico, chorando. Quem és, que em tua mágoa inconsolável Pareces abalar estas montanhas? Compassivo pergunta o Antiquário, E depois de chorar por largo tempo, Estas vozes o triste lhe tornava. Eu sou aquele amante sem ventura, Sempre extremoso, e sempre escarnecido, Sofredor das ingratas esquivanças, Que vi (ai dura vista!) face a face Do tardo Desengano o feio rosto. Ah Dorotéia, um sonho lisonjeiro Meus dias dilatou para que agora Te visse em outros braços, insultando O meu fiel amor? Ó noite infausta, Noite terrível, noite acerba, e dura! Quanto eu fora feliz, se a tua sombra Eternamente os olhos me cobrisse! Tibúrcio, que já tudo penetrava, Do caminho se informa, e dos lugares, Por onde fora a incerta companhia, Que em tanto risco o seu conselho espera. Não distante se eleva antigo bosque Horroroso por fama: já nos tempos, Em que torrente Bárbara saindo Do seio da Meotis inundava As províncias d'Europa, aqui se via Arruinado Templo. Os vivedoiros Ciprestes se levantam sobre os pinhos: Heras, e madressilvas enlaçadas Ali fazem curvar a crespa rama Dos velhos, e infrutíferos carrascos. Três fontes misturando as puras águas Mansamente se envolvem, e oferecem À vista cobiçosa os alvos seixos, E os verdes limos, que no fundo nascem. Os amigos fiéis aqui se encontram. Qual em noite funesta, e pavorosa Perdido caminhante, que receia Achar em cada passo um precipício, Se acaso a dúbia luz divisa ao longe, A esperança renasce, e de alegria Sente pular o coração no peito; Assim o Desertor constante, e forte Ao ver o companheiro, que prudente Sabe evitar, e prevenir os males. Eles se reconhecem, e derramam De alegria, e ternura o doce pranto. Ó vínculos do sangue, e da amizade! Menos unidos viu o Lácio antigo Aos dois Troianos, que uma cega noite, Espalhando o terror no campo adverso, Levou às turvas margens de Aqueronte. Gonçalo se retira pelo bosque; Com ele vai Tibúrcio, e mil projetos Formavam sobre o fim da grande empresa; E a muito fácil, e infeliz donzela Do seu profeta o rosto, e a voz conhece, E pensa, e teme de se achar culpada. Então o Amor, que na sonora aljava Esconde setas de mortal veneno, E setas doutro ardor mais grato, e puro, Fazia escolha das terríveis armas, Para vingar-se da cruel Marfisa: Marfisa ingrata, pérfida, inconstante, Peito de bronze, a quem a natureza Não formou para ternos sentimentos. E por ver se os seus tiros correspondem Sempre fiéis à mão, e ao desejo, Faz no teu peito, ó Dorotéia, o alvo, As forças prova, e a destreza ensaia. Encurva o arco ebúrneo, solta, e voa Sequiosa de sangue a ponta aguda Tinta no Averno. Ao golpe inevitável Tremeu o coração, e um vivo lume Nos olhos aparece: do seu braço Admira a força Amor. Vai outra seta Ao brando peito incauto, e descoberto Do mancebo infeliz. A vez primeira Soube de amor o namorado Cosme. Que violenta paixão pode encobrir-se! Os olhos falam: seguem as palavras; E depois o delírio. O tempo é surdo Aos votos dos amantes. Eles viam Crescer ditoso em rápidos momentos De uma nova esperança o belo fruto; Mas Gonçalo a favor dos arvoredos Oculto chega, pára, e ceva as iras. Tal pode ver-se o rápido Jaguara Do fértil Ingaí nos vastos campos, Se tem defronte o cervo temeroso; Encolhe-se torcendo a hirsuta cauda, Tenta, vigia, espera, e lambe os beiços Formando o salto sobre a incauta presa. Cegos amantes, aprendei agora Os perigos da nímia confiança. O zeloso Gonçalo investe; acodem Os companheiros duma, e doutra parte. Triste ruído! pedras contra pedras Ali se despedaçam: ao seu lado Acha Cosme a Rodrigo, acha a Bertoldo. Enquanto dura o férvido combate, Dorotéia, que vê sem uso a espada, De que o Herói em fúria se não lembra, (Que não farás, Amor, tu que transformas Uma donzela num feroz guerreiro!) Desembainha: a Morte insaciável Lhe afia o gume, e o furor sanguíneo Ergue, e dirige o ferro: já pendente Sobre Gonçalo o golpe, falta, e chega O amigo a tempo de salvar-lhe a vida, Pelos braços o aperta, e neles grava Roxos sinais dos dedos. Em derrota Correm os três, e o campo desamparam. O mísero, infeliz, e novo amante As negras fúrias levam, que despertam No aflito coração desesperado Ciúme, raiva, amor, ódio, e vingança. Assim o invicto domador dos monstros, Quando por mão da crédula consorte Recebeu o vestido envenenado No sangue infausto do biforme Nesso Os rochedos, e os montes abalava: Soaram os seus fúnebres gemidos Por longo tempo nas Ismárias grutas. Valentes, e indiscretos vencedores Tarde conhecereis, e muito tarde, Que um amigo ultrajado é perigoso. Para soltar os oprimidos braços Dorotéia se empenha; mas Tibúrcio, Lançando a esquerda mão à ruiva trança, A fez voltar, torcendo-lhe o pescoço, Ao claro Céu a vista ameaçante. Gaspar o ferro dentre as mãos lhe arranca: Este um braço sustenta, outro Gonçalo, E ela presa, e sem forças grita, e geme. Não doutra sorte o toiro da Chamusca, Quando três cães o cercam atrevidos, Dois pendem das orelhas, e um da cauda; A cornígera testa em vão sacode; Contra a terra se arroja a um lado, e outro, E depois que não pode defender-se, Mugindo exala a indômita fereza. |
CANTO V Alto conselho aqui se faz, aonde Infeliz Dorotéia, o teu destino Cruel, e dúbio dum só voto pende. Dos três heróis discordam as sentenças. Um deseja que fique em liberdade, E do Pai ultrajado exposta às iras: Inexorável outro pensa, e julga Que a sua morte deve dar exemplo, Que encha d'horror as pérfidas amantes. Gonçalo, que era o único ofendido, Consulta o coração, e se enternece. Mas o ardente Ciúme, que se alegra De pintar como crimes horrorosos Inocentes ações, então lhe mostra A feia Ingratidão, e o torpe Engano. A vingança cruel, e o vil Desprezo, Ainda mais terrível que a Vingança, Ganham do coração ambas as portas. Mimosa Dorotéia, e como ficas Coas mãos ligadas a um pinheiro bronco Sem outra companhia, que os teus males! É este o prêmio, filhas namoradas, Este o prêmio de Amor, quando imprudente Os termos passa, que a razão prescreve. De quando em quando um ai do peito arranca, Que ao longe os tristes, magoados Ecos Desperta, e faz sentir os duros troncos. E espera sem defesa (forte ingrata!) Que a devorem os lobos carniceiros. Assim ligada aos ásperos rochedos A filha de Cefeu ao mar lançava A temerosa vista, e lhe parece A cada instante ver surgir das ondas A verde espalda do marinho monstro. Sem esposo, sem pai, sem liberdade Mísera Dorotéia chora, e geme. Ai, Marcela cruel, que m'enganaste Com teus belos, fantásticos agouros! Queira o Céu que outras lágrimas sem fruto Mil vezes tresdobradas te consumam Os encovados olhos! Que inda a Morte Às tuas vozes surda correr deixe Piorando em seu curso vagaroso Os momentos de dor, e de amargura! Assim falava: a leve Fantasia Com as cores mais vivas lhe apresenta D'escarpados rochedos no alto cume palácio da cândida Inocência Cercado de funestos precipícios. Ó morada feliz, onde não torna Quem uma vez rodou entre as ruínas! Giram no plano do elevado monte Cruas dores, remorsos devorantes, As três Irmãs, a Peste, a Fome, a Guerra, pálido Receio, o Crime, a Morte, As Fúrias, e as Harpias, que s'envolvem No turbilhão dos míseros cuidados. Então de tantas lágrimas movida A mãe soberba do propício Acaso, A mudável Fortuna, e já cansada De ouvir as tristes queixas de Rufino, Tais palavras ao filho dirigia. Esse amante infeliz, que em vão suspira, Ache a dita uma vez, e enxugue o pranto. Acaba de falar, e ao mesmo tempo Rufino para o bosque s'encaminha, o Acaso o conduz por entre as sombras Da pavorosa Noite, que já desce. À rouca voz da mísera donzela Palpita o coração: o Amor, e o Susto Quiméricas imagens lhe afiguram; Mas ele chega: o próprio crime, e o pejo Cobrem de roxas nuvens o semblante De Dorotéia ao ver-se ainda amada Por aquele, que foi há poucas horas Alvo de seus insultos, e desprezos. A mole vista, as lágrimas em fio, Que aos corações indômitos abrandam, Que fariam num peito namorado? Tu lhe ensinas co fraco rendimento Os meios de vencer. Ó sete vezes Venturoso Rufino, s'ela um dia Não quiser renovar os seus triunfos, E medir a fraqueza do teu peito Pelo grande poder das suas armas! Depois de longa, e trabalhosa marcha, Cansado de sofrer enfim respira O Desertor, e mostra aos companheiros Os conhecidos montes. Fuma ao longe A fértil Mioselha, e pouco a pouco Os oiteiros, e as casas aparecem. Tibúrcio, que uma antiga, e voraz fome Sofreu nestes aspérrimos trabalhos, Com gosto espera de afogá-la em vinho, E já se apressa alegre, e transportado. Qual o novilho, que perdeu nos bosques A doce vista do rebanho amigo, E depois de vagar a noite, e o dia Por vales sem caminho, a Mãe conhece, Alegre salta, e berra, e por momentos Espera umedecer entre carícias Co leite represado a boca ardente. Mas Cosme, que conserva na memória As passadas injúrias, por vingar-se, Ao Tio de Gonçalo narra as causas Da funesta derrota. Determina Gaspar que os fatigados companheiros Achem na própria casa um doce abrigo. De os ver a Mãe s'aflige; mas espera Que obrigados da fome se retirem. Leve foi o jantar, mais leve a Ceia, E Tibúrcio com pena assim chorava Os dias, em que fora Tesoireiro Duma rica, e devota Confraria. Ó santa ocupação, tu nunca viste A magra mão da pálida Miséria, Que os fracos membros do mendigo apalpa. Sem trabalho em teus próvidos Celeiros A ditosa Abundância se recolhe. Se torno a possuir-te, quantas vezes Dos cuidados tenazes, e importunos Lavarás a minha alma nas perenes Purpúreas fontes do espremido cacho! Mostra Gaspar vaidoso a livraria, Donde o Tio Doutor sermões tirava. Mau Gosto, que à razão não dás ouvidos, Vem numerar as obras, que ditaste: Seja a última vez, e eu te asseguro Que não vejas fumar nos teus altares Do Gênio Português jamais o incenso. Geme infeliz a carunchosa Estante Co peso de indulgentes Casuístas, | Dianas, Bonacinas, Tamburinos, Moias, Sanches, Molinas, e Larragas. Criminosa Moral, que em surdo ataque Fez nos muros da Igreja horrível brecha, Moral, que tudo encerra, e tudo inspira, Menos o puro amor, que a Deus se deve. Aparecei famosa Academia De humildes, e Ignorantes, Eva, e Ave, Báculo pastoral, e Flos Sanctorum, E vós, ó Teoremas predicáveis, Não tomeis o lugar, que é bem devido, Ao Kess, ao Bem Ferreira, ao Baldo, ao Pegas, Grão-Mestre de forenses subterfúgios. Aqui Tibúrcio vê o amado Aranha, O Reis, o bom Supico, e os dois Suares: Dum lado o Sol nascido no Ocidente, E a Mística Cidade, doutro lado, Cedem ao pó, e a roedora traça. Por cima o Lavatório da consciência, Peregrino da América, os Segredos Da natureza, a Fênix renascida, Lenitivos da dor, e os Olhos de água: Por baixo está de Sam Patrício a cova, A Imperatriz Porcina, e quantos Autos A miséria escreveu do Limoeiro Para entreter os cegos, e os rapazes. Rudes montões de Gótica escritura, Quanto cheirais aos séculos de barro! Falta ainda uma Estante; mas Amaro Seguindo os passos da roubada filha Caminha aflito, e de encontrar receia O valente esquadrão, que procurava. Tanto a fama das bélicas proezas O seu nome fazia respeitado! Que novas desventuras se preparam! O povo cerca da Viúva as portas; Quando a triste Ignorância, que deseja Arrancar dentre os ásperos perigos Aos seus Heróis, por boca de Gonçalo Começou a falar. Se tantas vezes Mais que heróico valor tendes mostrado, É este o campo, ide a cortar os loiros Para cingir a vencedora frente. Não se diga que fostes oprimidos Por fraca, e rude plebe: este combate Não se pode evitar: só dois caminhos Em tanto aperto aos olhos se oferecem. Escolhei ou a índia, ou a Vitória. Disse, e depois abrindo uma janela, Arroja de improviso sobre o povo De informe barro uma espantosa talha. Seco trovão, que faz gemer os Pólos Quando vomitam as pesadas nuvens Do oculto seio a negra tempestade, Não causa mais pavor: ao golpe horrendo Muitos feridos, muitos assombrados Mancham de negro pó as mãos, e o rosto. Amaro anima aos seus, e enquanto voam Contra a janela mil pesados seixos, (Que novo estratagema!) o Antiquário Finge da capa um vulto, que aparece De quando em quando, com que atrai as armas, Que hão de servir depois para a defesa. Novo furor os corações acende. Qual a grossa saraiva ao sopro horrível Do Bóreas turbulento embravecido As searas derrota, os troncos despe, E o triste lavrador contempla, e chora A perdida esperança de seus frutos: Assim de pedras vaga, e densa nuvem Sai da janela a devastar o campo. As que arroja o Herói já se distinguem Pelo som entre as mais, já pelo estrago. A confusão, e o susto ao mesmo instante Pelo povo s'espalha: então Gonçalo Valeroso saiu por um postigo: Depois Gaspar; o intrépido Tibúrcio Metendo o braço, e a cabeça clama Que o não deixem ficar naquele estado. Herói as mãos firmando nas orelhas Ainda mais o aperta, e deixa exposto Da plebe ao riso, a cólera de Amaro. Quantas vezes Tibúrcio desejaste Não ser de grosso peito, e largo ventre! O Desertor enfim cansado chega À presença do Tio formidável, E a teimosa Ignorância, que se aferra, E que afirma, somente porque afirma, O coração de novo lhe endurece. A sofrer o trabalho dos estudos O Tio o anima, roga, e ameaça, Mas o Herói inflexível só responde, Que não há de mudar do seu projeto. Não é mais firme a carrancuda roca, Com que Cintra soberba enfreia os mares: Nem tu, ó Pão de Açúcar, namorado Da formosa Cidade, Velho, e forte, Que dás repouso às nuvens, e te avanças Por defendê-la do furor das ondas. Então falando o Tio em torpes crimes, E em furtadas donzelas, ergue irado Coa mão inda robusta o pau grosseiro, E a paixão desabafa: a longa idade Proíbe-lhe o correr; mas não proíbe Que o pau com força ao longe acompanhe. Ai, Gonçalo infeliz, que dura estrela Maligna cintilou quando nasceste! Depois de mil trabalhos insofríveis, Onde o gosto esperavas, e o sossego, Viste nascer estragos, e ruínas. Assim depois dos últimos combates, Que as margens do Scamandro ensangüentaram, O Rei potente d'Argos, e Micenas, Esperando abraçar saudoso os Lares, Abraça o ferro de uma mão traidora. Fechadas tem o experto Tio as portas: Volta Gonçalo, encontra novos golpes, E jaz enfim por terra. Ferve o sangue Da boca, e dos ouvidos: sem acordo, Apenas se conhece que inda vive; Mas tem glória de trazer consigo A derrotada estúpida Ignorância. Ela reina em seu peito, e se contenta De ter roubado aos muros de Minerva De fracos Cidadãos o preço inútil. Goza, Monstro orgulhoso, o antigo império Sobre espíritos baixos, que te adoram; Enquanto à vista de um Prelado ilustre, Prudente, Pio, Sábio, e justo, e Firme Defensor das Ciências, que renascem, Puras as águas cristalinas correm A fecundar os aprazíveis campos. Brotam as flores, e aparecem frutos, Que hão de encurvar co próprio peso os ramos Nos belos dias da estação doirada. Possa a robusta mão, que o Cetro empunha, Lançar-te num lugar tão desabrido, Que te sejam amáveis os rochedos Onde os coriscos de contínuo chovem. |
SONETOS 1 A Terra oprima pórfido luzente, E brilhante metal, que ao Céu erguidos Os altos feitos mostrem esculpidos Do Rei, que mais amou a Lusa Gente. Esteja aos Régios pés Dragão potente, Que tanto os povos teve espavoridos, Cos tortuosos colos suspendidos No gume cortador da espada ardente. Juntas as castas filhas da Memória As brancas asas sobre o Trono abrindo Assombrem a doirada, e muda História. Ao índio livre já cantou Termindo. Que falta, grande Rei, à tua Glória; Se os loiros de Minerva canta Alcindo? E. G. P. | 2 Enquanto o grande Rei coa mão potente Quebra os grilhões do Erro, e da Ignorância, E enquanto firma com igual constância À Ciência imortal Trono luzente, Nova Musa de clima diferente Canta do Pai da Pátria a vigilância, Vingando a Mãe das luzes da arrogância, Com que a despreza o estúpido indolente. O Monstro de mil bocas sem sossego, Que a glória de José vai repetindo Ou sobre a Terra, ou sobre o imenso Pego: Com ela o nome levará d'Alcindo Desde a invejada margem do Mondego Ao pátrio Paraguai, ao Zaire, ao Indo. L. F. C. S. |
0 comentários:
Postar um comentário