Resumo - Felicidade Clandestina

Este livro nasceu de um convite feito a Clarice Lispector, em 1967, para escrever semanalmente no Jornal do Brasil. Seriam crônicas, mas ela mesma declarou: “Vamos falar a verdade: isto aqui não é crônica coisa nenhuma. Isto é apenas. Não entra em gêneros. Gêneros não me interessam mais.”

No entanto, a obra é considerada como livro de contos. Além dos publicados no Jornal do Brasil, acrescentaram-se outros escritos em épocas diversas da vida da autora. Neles há muito de autobiográfico: recordações da infância (a filha do livreiro de “Felicidade Clandestina” existiu; o professor de “Desastres de Sofia” percebeu o tesouro da futura escritora.).
Escritas em primeira pessoa, neste que poderia ser considerado um dos livros de cunho mais autobiográfico da autora, as narrativas resgatam, de uma perspectiva memorialista da mulher adulta, a arguta ingenuidade de seus pensamentos e sentimentos aos oito e nove anos de idade, quando moradora da cidade do Recife, por cujas ruas perambulava, aos saltos, enchendo-as da memória da sua passagem. Esse material, buscado a uma época tenra de sua história pessoal, é utilizado para suas reflexões sobre a vida, a atividade literária e o exercício de um feminismo místico que se torna a marca de seu estilo.

Esta obra reúne 25 contos que tematizam a adolescência, a infância, e a família, sem deixar, em momento algum de se referir as angústias da alma, tal como é próprio da autora.

Os textos não diferem da orientação geral da ficção de Clarice Lispector. Ela pratica a exacerbação do momento interior dos personagens, a ponto de a própria subjetividade entrar em crise. O espírito deles viaja nas asas da memória e da auto-análise. Não se trata, porém, de sondagens psicológicas sentimentais egocêntricas. A inquietação íntima dos personagens se concentra na busca da própria identificação num cotidiano monótono e vazio. As camadas mais profundas da consciência humana são removidas pela autora em busca do significado da existência. Há portanto o encontro da psicologia com a metafísica: conhecer-se para ser.

Clarice Lispector emprega o processo narrativo do fluxo da consciência, que é o rompimento dos limites de espaço e de tempo. O pensamento fica solto. Pequenos fatos exteriores provocam uma longa viagem abstrata das idéias, sem se basear numa estrutura seqüencial da narração.

Ela faz os personagens viverem o processo chamado de “epifania”, ou seja, revelação. Em outras palavras, de repente, diante de ocorrências mínimas, o personagem se descobre e vê revelada uma realidade mais profunda. Muitas vezes, ele mesmo não consegue perceber com clareza que realidade é essa, porém sua vida ou sua visão mudam.

Exemplos dessas situações epifânicas: a menina que se torna “amante” do livro; os dois amigos que se separam para avivarem a amizade sincera; o menino míope que descobre a paixão no amor; a menina que se sente valorizada quando o folião lhe entorna confete na cabeça; a mulher que percebe sua real situação pisando num rato morto; a menina ruiva que sente o peso da solidão quando o cachorro se vai; a contemplação de um ovo que faz a narrador refletir sobre o mistério profundo da vida; a menina formal que se vê criança diante de um pintinho e reage matando-o; a mulher que, olhando o dente quebrado, confirma a falta de sentido da vida; a visão do inseto esperança que leva a mulher a se questionar sobre o nada; a macaquinha que induz o filho a perceber seu amor pela mãe; a menina que faz o professor sorrir e, assim, descobre sua falta de importância; a criada que é oportunidade de a patroa entender um ser humano; os adolescentes que diante da casa velha concluem não serem pessoas especiais; o menino que se descobre homem ao “beijar” a estátua da mulher-chafariz...

Os vôos metafísicos de Clarice Lispector partem, geralmente, de cenas domésticas ou, na visão estereotipada masculina, sem importância. Sua condição de mulher a faz muito sensível aos problemas das pessoas carentes. A marca registrada de seus personagens é serem tipos sem relevância aos olhos da sociedade (meninas, velhas, adolescentes) mas ricos em sua interioridade.

Ainda integra a característica de mulher-autora a visão do nascimento da mulher na menina. São numerosas as personagens-meninas que, de uma forma ou de outra, se tornam adultas a partir de experiências aparentemente corriqueiras.

Toda essa exaustiva pequisa do interior do ser humano – a subjetividade procurando se orientar envolvida pela objetividade – pode passar despercebida ao leitor desatento. Isso porque os textos são muito pobres de fatos, aliás, propositalmente pobres. Cenas comuns, desenhadas sem rebuscamentos, mas com bastante precisão de detalhes, podem esconder a profundidade do conteúdo analítico. As palavras não são raras, os aspectos descritos e narrados parecem irrelevantes, a sintaxe não se complica. O campo da linguagem fica livre para o leitor acompanhar os pensamentos que movem as intenções dos personagens à procura de se ajustarem com eles mesmos.

ENREDOS

FELICIDADE CLANDESTINA

Neste conto a narradora recorda sua infância no Recife.

A introdução do conto apresenta as duas protagonistas da narrativa, salientando os aspectos negativos de uma, que serão bem mais evidentes que os da outra: “Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme...” Mas, apesar de todos esses defeitos, ela era agraciada com algo que a tornava privilegiada: “possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria”. E isto a tornava superior a todas suas amigas. A outra que apesar de ser como as demais meninas: “bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres”, não tem acesso aos livros. Por isso, ela, que é a narradora em 1ª pessoa, relata a sua experiência de amá-los e não poder desfrutá-los.

A filha do dono da livraria não aproveitava os livros e, segundo a narradora, nem as outras meninas, uma vez que ela, até mesmo nos aniversários, não tinha a gentileza de dar um livro de presente: “em vez de pelo menos um livrinho barato”. Nesse ponto chegava a ser irônica, pois seu presente favorito para as outras eram cartões postais da loja do pai, como para mostrar-lhes que o mundo dos livros, para elas, era inacessível, sempre ficariam distantes dele, enquanto ela detinha o poder de possuí-los.

Por isso, ela vivia pedindo-os emprestados àquela colega filha de dono de livraria. Essa colega não valorizava a leitura e inconscientemente se sentia inferior às outras, sobretudo à narradora.

Em relação a esse comportamento da menina que lhe dava cartões postais da livraria do pai, a narradora era indignada: “ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas”. Por entender que possuir livros significava ter poder sobre os que não tinham, a filha do dono da livraria, resolveu que às outras não daria esse gostinho de querer mudar esta situação. Pois é preciso entender que para essas meninas leitoras o seu adentramento na ambiente dos livros seria uma opção pela liberdade “a ponto de entendê-lo enquanto relação amorosa”.

Essa menina era mesmo cruel e com a narradora exerceu com calma ferocidade o seu sadismo, tanto que a pobre nem percebia, tal era a sua ânsia de ler: “continuava a implorar-lhe emprestado os livros que ela não lia”. Até que chegou o dia em que começou a exercer sobre a outra uma tortura chinesa, a informou que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, que para esta “era um livro grosso, [...], era um livro para se ficar vivendo, comendo-o, dormindo-o”.

para a nossa narradora, os livros lhe davam “um lar permanente”, e um lar que ele “podia habitar exatamente como queria, a qualquer momento.” Porém, para ela, o livro estava longe de suas posses. Então, foi logo pedindo emprestado o tal, a outra pediu que passasse por sua casa no dia seguinte e ela o emprestaria.

Para a narradora, o livro é o objeto do seu desejo e para este não há limites: “Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam”. Ao chegar o tão esperado dia seguinte, foi à casa da outra “literalmente correndo”.

Mal sabia a ingênua menina que a colega tinha um plano diabólico. A dona do livro, quando a narradora chegou até sua casa e pediu-o, disse que o havia emprestado à outra menina, que ela voltasse no dia seguinte. Ficou boquiaberta, mas seu desejo era tal que, a esperança invadiu novamente seu ser e ela andou pelas ruas pulando, sonhando: “guiava-me a promessa do livro”. No dia seguinte, outra desculpa, o livro ainda não havia sido devolvido. E assim se seguiram os dias. O terror por não ter o livro para ler e a outra se divertindo em alimentar uma esperança era uma cena digna de pena: “eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer”.

Então todos os dias, invariavelmente, ela passava na casa e o livro não aparecia, sob a alegação de que já fora emprestado. Esse suplício durou muito tempo. A sua relação com o livro é tal, que todo esse sofrimento começou a afetar o seu físico: “eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados”. Tudo isso porque o ato da leitura para ela era uma necessidade, padecia com o não-ler, tinha uma fome que precisava ser saciada, pela chance que a outra poderia lhe dar, ao emprestar-lhe o livro tão esperado.

Chegou finalmente o dia da redenção da narradora, quando todos seus males seriam sarados. Certo dia, a mãe da colega cruel interveio na conversa das duas e descobriu que sua filha estava enganando a outra menina: “mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!”

E essa descoberta não era a pior, mas sim a descoberta, horrorizada, da filha que tinha. A narradora seria agora agraciada pelo tão almejado objeto do desejo: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser”. Esse “por quanto tempo quiser” significava muito mais do que dar-lhe o livro, ela teria posse sobre o seu objeto do desejo. Toda a sua espera, sua insistência, finalmente era recompensada.

Para a narradora foi impossível descrever-nos o que sucedeu assim que recebeu o livro na mão. Ela só lembrava que “o segurava firme com as duas mãos, comprimindo contra o peito.” Imaginamos que agiu assim por temer que algo ou alguém a separasse dele. Esqueceu até mesmo quanto tempo levou até chegar à casa. Porém, isso não importava, o que valia a pena era sentir que o livro estava com ela: “meu peito estava quente, meu coração pensativo”. Isso indica um sentido diferente para a leitura.

Para o leitor do conto, a menina que tanto queria o livro ao conseguir possuí-lo, devorá-lo-ia em pouco tempo. Mas não foi isso o que aconteceu. Ela chegou em casa e não começou a ler: “fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter”. Algum tempo depois, leu algumas partes, que considerou maravilhosas, fechou-o novamente, indo fazer outras coisas, fingia que não sabia onde guardava o livro, achava-o, lia novamente.

Essa foi a felicidade clandestina da menina. Fazia questão de “esquecer” que estava com o livro para depois ter a “surpresa” de achá-lo.

A narradora “criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade”. A felicidade em ter acesso aos livros, à leitura, que para ela era clandestina, pois não possuía livros e nem condições financeiras que possibilitassem um maior contato com eles. Esta “felicidade clandestina” significa que ela está muito feliz por realizar algo para ela ilegal, pois o fato de possuir um livro, era, muitas vezes, na sociedade antiga, um privilégio dos mais favorecidos economicamente e continua sendo até hoje. Assim, podemos afirmar que a personagem narradora quebrou os paradigmas dessa diferença social, e por isso, cometeu grave delito, com sua insistência e amor aos livros. Conseguiu ter acesso ao seu objeto desejado.

Ao realizar algo proibido, a narradora sabe que deveria ter orgulho, pois conseguiu alcançar seu objetivo, e pudor, pois poderia perder o que conseguiu, além disso, estava vivendo no ar. Agora ela “não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu ‘amante’”.

UMA AMIZADE SINCERA

Neste conto, a história incomoda porque obriga ver a amizade como um desconforto: o cotidiano de dois amigos, as confidências, a partilha das coisas banais da convivência são um fardo que ambos suportam pela amizade. Os momentos mais tipicamente valorizados na amizade convencional, a confidência e a solidariedade, são marcados negativamente pelo narrador, que os relata com uma carga latente de ironia; os momentos ruis, aqueles que normalmente se evitam, como o esgotamento de ter o que dizer ao outro e a presença incômoda, quase indesejada, a denunciar a solidão, são, por seu turno, os mais valorizados.

O enredo funciona de modo inverso ao do conto "Os obedientes": a amizade sincera é aquela que não pode continuar sendo; a perda, a despedida, não é resultado de desafeto, mas, ao contrário, conseqüência de um afeto intenso. O sentimento de doação e cumplicidade de dois amigos é tal que empresta à amizade um ar de homossexualismo, que o narrador faz questão de negar, contando o episódio em que fica noivo. Do ponto de vista de senso comum, esta seria a amizade que "não deu certo".

Uma leitura tranqüilizadora deste conto tende a negar a afirmação final do narrador de que eram "amigos sinceros". Esta "amizade" seria exagerada, muito exigente e egoísta ("se eles cedessem cada qual um pouquinho, dava pra continuar amigos").

Os dois amigos não são nomeados. O tempo é cronológico, não determinado. A narrativa em primeira pessoa, com onisciência parcial, segue a estrutura tradicional do enredo (início – meio – fim) e nos é contada depois dos fatos terem acontecidos. O espeço é urbano, não determinado.

Este conto tem duas características fundamentais: a originalidade do estilo e a profundidade psicológica no enfoque de temas aparentemente banais. A linha condutora é a estória de uma amizade que vai se desgastando com o tempo e a convivência acentuada. Através da consciência do narrador, é revelada ao leitor uma dimensão humana profunda e poética, de forma simples.

A narrativa, cheia de digressões (que fazem lembrar o estilo machadiano), vai além da descrição realista de um cotidiano inexpressivo, questiona os valores universais do ser humano. Seu estilo caracteriza-se pela ausência de retórica (discursos eloqüentes) e sem melodramas (impactos emocionais), o interior das personagens vai aparecendo e sensibilizando (é o que chamamos de epifânia).

O narrador conheceu um colega de escola no último ano de estudo. Desde então, tornaram-se amigos inseparáveis. Quando não estavam conversando pessoalmente, falavam-se pelo telefone.

A partir de certo momento, os assuntos começaram a faltar. Às vezes, marcavam encontro e, juntos, não tinham sobre o que conversar. Calados, logo logo se despediam e, ao chegar cada qual em sua casa, a solidão batia mais forte.

A família do narrador mudou-se para São Paulo e ele, então, ficou no apartamento dos pais. O amigo morava sozinho, pois seus parentes ficaram no Piauí. A convite do outro, dividiram o mesmo apartamento. Ficaram alegres, porém instalou-se a falta de assunto. Só tinham amizade e mais nada. Tentaram organizar umas farras no apartamento, contudo a vizinhança reclamou.

As férias foram angustiantes. A solidão de um ao lado do outro era incômoda demais. Quando o amigo teve uma pequena questão com a Prefeitura, o narrador fez disso pretexto para uma intensa movimentação, assumiu cuidar de toda a documentação exigida. No fim do dia os dois tinham assunto, pois exageravam as palavras no comentário de detalhes de pouca importância. Foi então que o narrador entendeu por que os namorados se presenteiam, por que marido e mulher cuidam um do outro e por que as mães multiplicam o zelo pelos filhos. É para terem oportunidade de ceder a alma um ao outro.

Resolvida a questão com a Prefeitura, os dois arrumaram falsas justificativas de viajarem sós para estar com as respectivas famílias. Sabiam que nunca mais se reveriam. “Mais que isso", conclui o narrador, "que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros.”

MIOPIA PROGRESSIVA

O narrador conta sobre um menino que usava óculos e sobre sua relação com os familiares, que agiam segundo suas falas mais ou menos originais.

O menino era tido como inteligente e astuto em casa. O que ele dizia provocava olhares mútuos de confirmação de sua superioridade. Então ele começou a compreender que dependia dele a boa convivência dos membros da família. Quando não era ele o centro das atenções, eles se desentendiam.

Para apoderar-se da chave de sua inteligência, o menino costumava repetir seus ditos; mas ninguém prestava mais atenção. Essa instabilidade dos familiares passou para ele, que adquiriu, então, um hábito mantido o resto da vida: pestanejava e franzia o nariz, deslocando os óculos que usava por causa da miopia. Toda vez que desenvolvia esse cacoete, era sinal de que estava interiormente tendo noção de sua instabilidade.

Iria passar uma semana na casa de uma prima que não tinha filhos e que adorava crianças. Passou os dias preparando-se, criando expectativas, imaginando o “dia inteiro” que passaria com ela e o amor inteiro que receberia. Na semana que antecedeu a esperada visita, a cabeça do menino ferveu: como se apresentaria diante da prima? Inteligente? Bem comportado? Quem sabe até como palhaço? Triste talvez? Sentia até aperto no estômago quando antecipava a situação de que ia ser amado sem seleção, sem escolha, o que representava uma estabilidade ameaçadora. Aos poucos, suas preocupações passaram a ser outras: que elementos ele daria à prima para ela ter certeza de quem ele era? Como encararia o amor que ela nutria por ele?

Ao entrar na casa da prima, duas surpresas o desnortearam (ele se desnorteava com surpresas): a prima tinha um dente de ouro no lado esquerdo da boca; ela o recebeu com naturalidade, sem evidenciar amá-lo.

Já que suas previsões foram por terra, resolveu brincar de não ser nada. No entanto, à medida que o dia avançava, o amor da prima se evidenciou. Era um amor sem gravidez: ela queria que ele tivesse nascido dela; por isso demonstrava o amor estável, a estabilidade do desejo irrealizável. Amor que incluía paixão, a paixão pelo impossível.

Quando o menino descobriu o ingrediente da paixão no amor, ele perdeu a miopia e viu o mundo claramente. Foi como se ele tivesse tirado os óculos e a própria miopia o fizesse enxergar.

Desde então, talvez, ele adquiriu o novo hábito de tirar os óculos a pretexto de limpá-los “e, sem óculos, fitava o interlocutor com uma fixidez reverberada de cego.”

A forma de amá-lo era deixá-lo viver e ele sentiu-se amado, e “foi como se a miopia passasse e ele visse claramente o mundo”, ou “a miopia mesmo é que o fizesse enxergar”.

RESTOS DO CARNAVAL

Em “Restos do Carnaval” o procedimento narrativo é o mesmo que em "Felicidade Clandestina": a escritora adulta rememora um episódio da sua infância passada nas ruas e praças de Recife, que encontravam “sua razão de ser” no Carnaval. O episódio tem uma carga emocional muito forte, porque expressa o conflito vivido pela menina pequena, cercada pela alegria da festa alheia, a festa de rua, a festa de todos, a festa em si mesma, e o peso de um drama familiar, nota destoante de uma tragédia íntima, ameaçadora e terrível para qualquer criança: a doença da mãe, que piora nesta data, e que depois viria a falecer. O contraste é gritante, e aparece até no título: “restos”. Restos de um carnaval que, por qualquer motivo, a escritora relembra como “as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete”, e que vem a se tornar alegoria de outras situações semelhantes na vida, quando a própria vida em festa parece rir, cruelmente, do seu luto pessoal.

A história, porém, não ocorre numa quarta-feira. O carnaval está apenas começando. A atenção da família se concentrava na doença da mãe; por isso, se permitia pouca participação da menina na folia: ficava até onze horas da noite, ao pé da escada do sobrado onde morava, olhando os outros se divertirem. Passava o carnaval inteiro economizando o lança-perfume e o saco de confetes que ganhava. Ela não se fantasiava; porém, cheia de felicidade, se assustava com os mascarados e até conversava com alguns deles.

Aos oito anos, houve um carnaval diferente. A mãe de uma amiguinha fantasiou a filha de rosa, usando papel crepom; com as sobras, fez a mesma fantasia para ela. Os cabelos ficariam enrolados e lhe passariam baton e rouge.

Desde cedo, ela viveu a expectativa do momento de vestir a fantasia; a euforia era tanta que até superou o orgulho ferido de ganhar um presente porque sobrou papel.

Toda a dor que a autora adulta revela pela consciência do contraste irônico da situação, para ela imperdoável (“Muitas coisas que me aconteceram tão piores que esta, eu já perdoei. No entanto esta não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso”), inexiste na atitude da criança descrita. Completamente alheia, ou alheando-se inconscientemente do seu drama pessoal, a menina não pensa na mãe a sofrer. Não pensa na morte que se aproxima, e a agitação da família em torno da mãe doente é ignorada em função da fantasia. A fantasia real, a roupa de papel crepom cor-de-rosa, que pretendia imitar as pétalas de uma flor; e a fantasia abstrata, a realização de um sonho: “pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma”, que revela o desejo de fuga daquela situação angustiante demais para ser apreendida pela criança, e talvez da própria vida real, sentida em seu limite e estreiteza.

O clímax do conto acontece em meio à agitação da menina que, preparada para a festa, é enviada depressa à farmácia para comprar remédio para a mãe, que sofre uma súbita piora.

Ela vai, correndo, mas acompanhada de muda revolta e indignação pela coincidência da tragédia que se atravessa no caminho da sua alegria, sentimentos que perduram para além da infância, sobrevivendo no espírito da mulher adulta que relembra o fato. Nenhuma palavra de simpatia, preocupação ou dor é proferida com relação à mãe, nem mesmo pela adulta que a rememora. Clarice menciona apenas a lembrança de algum remorso da menina pela sua “fome de êxtase”, que ameaçava voltar em meio à festa da qual se sentia impedida de participar. De maneira algo egoísta, o que dói é a quebra da magia da criança, que começava a se acreditar uma Rosa, satisfazendo seu “sonho intenso de ser uma moça”. O que dói é a súbita deserotização da menina, que finalmente teria realizado o seu sonho de transformação em mulher, com a inesperada roupa que completaria a pintura forte nos lábios, o ruge nas faces e os cabelos frisados pela irmã, a seu pedido, nos outros Carnavais. O que dói, e o que a faz relembrar este episódio, é o desencanto vivido: “não era mais uma Rosa, era um palhaço pensativo de lábios encarnados”.

Mais tarde, acalmada a crise da mãe, ela saiu com a fantasia completa, contudo o encantamento já não existia mais. Como poderia ela se divertir, se a mãe estava mal?

O “final feliz” surge como um anti-clímax, aí colocado para impedir, talvez, que a condenação da mãe doente pela criança frustrada em seus desejos apareça como o único desfecho cruel dessa história. Daí a menção ao menino de doze anos, que cobre de confete os cabelos “já lisos” da menina, fazendo-a sentir-se, por um instante neste dia horrível, uma “mulherzinha” de oito anos: uma Rosa.

O GRANDE PASSEIO

Uma velhinha pobre andava pelas ruas. Era apelidada de Mocinha. Havia sido casada, tivera dois filhos: todos morreram e ela ficou sozinha.

Depois de dormir em vários lugares, Mocinha acabou, não se sabia por que, passando a dormir sempre nos fundos de uma casa grande no bairro Botafogo. Cedinho ela saía “passeando”. Na maior parte do tempo, a família moradora da casa se esquecia dela.

Certo dia, a família achou que Mocinha já estava lá por muito tempo. Resolveram levá-la para Petrópolis, entregá-la na casa de uma cunhada alemã. Um filho da casa, com a namorada e as duas irmãs, foi passar um fim-de-semana lá e levou Mocinha.

Na noite anterior, a velhinha não dormiu, ansiosa por causa do passeio e da mudança de vida. Como se fossem flashes descontínuos, vinham-lhe à cabeça pedaços de recordações de sua vida no Maranhão: a morte do filho Rafael atropelado por um bonde; a morte da filha Maria Rosa, de parto; o marido, contínuo de uma repartição, sempre em manga de camisa, ela não conseguia se lembrar do paletó... Só conseguiu dormir de madrugada. Acordaram-na cedo e a acomodaram no carro.

A viagem transcorreu para Mocinha entre cochilos e novos flashes de memória com cenas entrecortadas da vida passada. Foi deixada perto da casa do irmão do rapaz que dirigia, Arnaldo; indicaram-lhe o caminho e recomendaram que dissesse que não podia mais ficar na outra casa, que Arnaldo a recebesse, que ela poderia até tomar conta do filho.

A alemã, mulher de Arnaldo, estava dando comida ao filho; deixou Mocinha sentada sem lhe oferecer alimento, aguardando o marido. Este veio, confabulou com a mulher e disse a Mocinha que não poderia ficar com ela. Deu-lhe um pouco de dinheiro para que tomasse um trem e voltasse para a casa de Botafogo. Ela agradeceu e saiu pela rua. Parou para tomar um pouco de água num chafariz e continuou andando, sentindo um peso no estômago e alguns reflexos pelo corpo, como se fossem luzes. A estrada subia muito. “A estrada branca de sol se estendia sobre um abismo verde. Então, como estava cansada, a velha encostou a cabeça no tronco de árvore e morreu.”

COME, MEU FILHO

A mãe dá comida ao filho Paulinho e ele fica puxando conversa para evitar ter que comer. Os assuntos que ele traz são desconexos, simples pretextos para não comer. Por exemplo: o mundo é chato e não redondo; o pepino parece “inreal”, faz barulho de vidro quando a gente mastiga; quem teria inventado o feijão com arroz; o sorvete é bom quando o gosto é igual à cor... A mãe, paciente, vai respondendo laconicamente e insistindo em que Paulinho não converse tanto e coma.

No fim, ele pergunta se é verdade que adivinhou que ela o olha daquele jeito não é para ele comer, mas porque gosta dele. A mãe diz que ele adivinhou sim, mas torna a insistir em que ele coma. Paulinho retruca: “ – Você só pensa nisso. Eu falei muito para você não pensar só em comida, mas você vai e não esquece”.

PERDOANDO DEUS

Este texto de Clarice externa, com sua peculiaridade de expressão, uma experiência interior de grande impacto à protagonista.

O espaço da rua volta a se transformar em local de perigo, no qual a personagem é forçada a reconhecer sua situação de desamparo. No início da narrativa, uma mulher descreve, em primeira pessoa, a prazerosa experiência de caminhar livremente pela Zona Sul do Rio de Janeiro, vivenciando a harmonia com a paisagem urbana e a plenitude de um sentimento maternal totalizante:

Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que (...) estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. (...) Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo.

Esse pacto de comunhão e proteção ideais é rompido bruscamente quando a mulher, logo em seguida, tropeça em um rato morto, um rato ruivo morto (a escolha da cor pode ser pela aliteração, pois, em Clarice, quando ocorre o momento do “transe”, ou da percepção aguçada, a linguagem se torna densamente poética). Espanta-se: "Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, (...)". Corre espavorida. Revolta-se. E pensa em vingar-se de Deus. E aí, Deus confunde-se com a natureza: "Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto."

A brutalidade da natureza é usada como metáfora de Deus. Eis, então, que ocorre um processo de auto-conhecimento, pelo reconhecimento das próprias fraquezas, limitações, e a reconciliação com Deus, mas não com o Deus perfeito, sereno e distante do início. É um processo de quitação, incondicional, portanto baseado no espírito de renúncia, sem prerrogativas, agora com uma visão mais humana de Deus (e de si mesma). Só então ocorre o amor a Deus. Assim o amor, antes interditado, pode ser dirigido e ofertado.

Confrontando-se com a sua vulnerabilidade, a mulher vive a desagregação e a desordem íntima, a que se segue a vontade de vingança contra a autoridade onipotente que a ferira com sua “grosseria”. Entretanto, a personagem vislumbra a possibilidade de transformar a dimensão trágica de seu sofrimento em sabedoria – possibilidade que já se anuncia no modo verbal presente no título do conto. E o texto termina com o reconhecimento da alteridade, do “mundo que também é rato”.

Como na maioria dos contos de Clarice, o enredo de "Perdoando Deus" é desossado, inacentuado, e quando eventualmente ocorre, é composto não de uma trama, mas de um incidente que dispara o transe psicológico, subjetivo e estético. Neste conto o que se ressalta é a função do incidente como a senha para o transe e a imersão no estado de hiper-sensibilidade poética.

Concluiu a narradora então que a sensação tão solene que tivera era falsa, estivera amando um mundo que não existe (“no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. E porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele.(...) Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho da minha natureza?”)

Finalmente, ficou esclarecido na mente dela que estava querendo amar a um Deus só porque ela não se aceitava. Ela estaria amando um Deus que seria seu contraste, esse Deus seria apenas um modo de ela se acusar. “Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe”.

Estar caminhando pela praia, representa seu contato mais subjetivo com o mundo, com a natureza, de forma singela e espontânea. Deixa-se levar pelo movimento que arrebata todos os seus sentidos, provocando-lhe uma experiência inédita integralizante. Por uns momentos sente-se parte do cosmo, e nesta percepção de Unidade vive a consciência de Deus, e sente por este Ser um carinho indescritível que a envolve e consome todos os espaços de sua consciência.

Neste estado de ser, vive momentos em que se desliga de toda materialidade, experimentando a suspensão dos limites impostos por ela, e nesta expansão do todo sua relação com Deus é atípica, misto de ternura, força criadora e entrega como parte da unicidade que o simples caminhar lhe proporciona.

Ao pisar num rato morto, a personagem do texto assusta-se e reage com infantilidade, num pavor desmedido.

A figura grotesca do repugnante animal, morto, a desconecta de imediato do mundo da essência, das idéias e da emoção mais pura, colocando-a em contato direto e sem possibilidade de fuga, com a realidade concreta e factual.

A rejeição que lhe provoca tal situação é tanta que se revolta com Deus. O mesmo Deus que segundos antes lhe despertara sentimentos dos mais nobres, belos e sutis.

O que fazia algo tão deplorável em meio a tanta beleza e harmonia?

Sua primeira reação é negar Deus, rejeitá-lo, culpá-lo, ignorá-lo.

O rato tem então a função de colocá-la frente ao seu próprio julgamento, onde a idéia e o fato se entrelaçam e formam a mais concreta realidade.

Sente-se desnuda de justificativas. Não há como fugir nem disfarçar.

Percebe que ao deparar com sua própria fraqueza, essa mesma fraqueza cria a rejeição, como para se proteger. Talvez num movimento que busque culpar alguém pela desordem, pelo aspecto feio, pela falha de sua própria vida.

Num súbito impulso conclui que a sensação que experimentou é falsa. Não existia. Uma lucidez dolorosa a envolve e percebe com clareza como a felicidade, em sua plenitude, pode ser algo alienante.

Enfrenta a verdade crua, sem possibilidade dela se apartar. A ilusão deste mundo fictício embriaga e causa um torpor que a mantém afastada da realidade.

Por um tempo questiona-se sobre sua própria identidade, considerando a possibilidade de ser ela própria uma mera ilusão.

Nesse raciocínio vai delineando o provável equívoco em sua maneira de amar. E não pode fugir de uma questão vital: Como amar a essência real do mundo se não ama sua própria realidade do ser? Se não a percebe com clareza?

Ao ver-se negando uma parte de si mesma compreende a fragilidade das premissas em que baseia seu contato com a vida.

Vai conjeturando, perseguindo a lógica que lhe escapa, ate que se dá conta de que talvez, Deus seja apenas e tão somente uma criação sua; uma projeção daquilo que não aceita em si mesma.

Termina sua caminhada num silencio quase mórbido, envolto em sentimentos de tristeza e quietude, uma vez que fixa sua atenção ao movimento interior de seus pensamentos.

Conclui neste estado de espírito: “Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe”.

TENTAÇÃO

É uma cena lírica. Uma menina ruiva estava sentada na calçada, triste e soluçante.

Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão de Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset ruivo.

A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.

Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro.

Que foi que disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú.

Mas ambos eram comprometidos.

Ela com sua infância impossível, o centro de sua inocência que só se abriria quando ela fosse mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.

A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com os olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.

Mas ele foi mais forte que ela. Nem só uma vez olhou para trás.

Leia o conto na íntegra:

Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.

Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.

Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.

Lá vinha ele trotando, à frente da sua dona, arrastando o seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.

A menina abriu os olhos pasmados. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.

Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo. Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.

Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se, com urgência, com encabulamento, surpreendidos.

No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes do Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.

Mas ambos eram comprometidos.

Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.

A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.

Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.


O OVO E A GALINHA

O conto "O ovo e a Galinha" se parece mais com uma dissertação sobre o mistério do ovo. Mas sendo algo entre a crônica e o conto ou um simples texto sem classificação, pouco tem daquela organização que encontramos no poema "O Ovo da Galinha", de João Cabral de Melo Neto.

"O ovo e a galinha" começa com uma frase em que se identifica o tempo, o espaço e o narrador da história: "De manhã na cozinha sobre a mesa vejo um ovo".

Em seguida todos esses referenciais começam a ser desmantelados: "Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver um ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo há três milênios?"

O assunto inicial, o ovo, vai desdobrando-se e multiplicando-se com o desenrolar do texto. Definido como "tratado poético sobre o olhar", pelo crítico José Miguel Wisnik, ou como "meditação", por Benedito Nunes, "O ovo e a galinha" é um texto que alarga os limites da obra literária e, embora apresente os elementos básicos de uma narrativa, faz pensar sobre o que é preciso exatamente para contar uma história, coisa que de fato não ocorre em seu caso.

O ovo, tema do conto, parece também um subterfúgio. Às vezes parece ser a representação da vida, outras da liberdade, ou a verdade, ou a opressão, ou algo para desviar a atenção da essência, ou a própria essência. Após muitas considerações, algumas lógicas outras alucinantes e subjetivas, sobre o ovo, a narradora passa a dizer de um “eles” indeterminado, que manipula, que permite, que sugere, que instrui, que obriga, mas que não consegue eliminar totalmente a vontade e a consciência.

A palavra, no conto, funciona como disfarce da realidade. Muitas e controvertidas palavras geram contradições que escondem a verdade.

Este texto reforça uma das características nas obras de Clarice Lispector que é a analise introspectiva, ou seja, é uma narrativa baseada na memória, na emoção, isto é, no fluxo da consciência do narrador. Como já citado, esta narrativa rompe com a linearidade, não fica clara a estrutura de início, meio, fim.

Com a frase inicial da narrativa, “de manhã, na cozinha, sobre a mesa vejo um ovo”, Clarice faz uma relação com o início do dia e o início da vida. O ovo representa o narrador, o presente, o passado e o futuro. Isto é o tempo percorrido, isto é o ciclo da vida.

“Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo”. Nesta análise o narrador compara o ovo com o infinito, sem começo, nem fim.

No próximo parágrafo veremos que Clarice diz que ver o ovo é impossível, somente a máquina vê o ovo. O cão não vê o ovo. O amor pelo ovo também não se sente. Mas é super sensível. A gente não sabe que ama o ovo, mas já fui depositária do ovo; quando morri tiraram o ovo de mim e só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo o ovo é obvio. No próximo parágrafo Clarice fala em entendimento.

Diz: "ao ovo dedico a nação chinesa (fazendo uma referência à superpopulação)". Depois diz que "o ovo é uma coisa suspensa (como o mundo); olho o ovo para não quebrá-lo. Tomo cuidado de não entendê-lo. Entendê-lo não é modo de vê-lo. O que não sei do ovo é que é realmente imortal. A lua é habitada por ovos. O que é ovo? É uma exteriorização. É dar-se; quem vê mais do que a superfície esta com fome. O ovo é a alma da galinha. Ovo um projétil parado. Ovo é ovo no espaço. O ovo me vê. Eu te amo. Ovo. A aura dos meus dedos é que vê o ovo. Mas dedicar-me à visão do ovo seria morrer para a vida mundana. Eu preciso da clara e da gema (referência feita ao senhor Deus - “clara a gema” referência feita à ciência e a religião). O ovo é um dom. O ovo é invisível a olho nu. O ovo terá sido talvez um triângulo que tanto rolou no espaço que foi se ovulando (triângulo = trindade, ovulando = eterno, infinito). O ovo é originário na Macedônia (Jesus Cristo andou pela Macedônia), o homem o desenhou na areia e depois o apagou com pé nu.

Clarice continua dizendo que o ovo é coisa de se tomar cuidado. O ovo vive sempre foragido. Por estar sempre adiantado demais para a sua época. O ovo é branco, mas não pode se chamado Dr. Branco. Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele era. E foi chamado de “aquele homem” (referência feita a Jesus).

O ovo ganha um sobrenome: ovo de galinha. Nesse parágrafo Clarice nos apresenta o perigo que o ovo representa.

"Perigo que ele se descubra, se descobrirem poderiam obrigá-lo a se tornar retangular. Mas não pode. Sua grandiosidade vem da grandeza de não poder, que se erradia como um não querer. O ovo nos põem em perigo. Nossa vantagem é que ele é invisível.
O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz da galinha. O ovo é a cruz que a Galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível da Galinha. A galinha ama ovo (galinha = humanidade = ovo = Deus). Ela não sabe que existe o ovo se soubesse que existia em si mesma ela se salvaria (humanidade e Deus)? O desarvoramento da galinha vem disso; gostar não fazia parte de nascer. Gostar de estar vivo dói. Quanto veio antes. Foi o ovo que achou a galinha, a galinha não foi sequer chamada. A galinha é diretamente escolhida. A galinha vive como um sonho. Não tem senso de realidade. O mal desconhecido da galinha é o ovo. A galinha tem muita vida interior. A galinha olha o horizonte. Como se da linha do horizonte viesse vindo um ovo. Como a galinha poderia se entender se ela é o oposto do ovo. A contradição do ovo?
Dentro de si a galinha não reconhece o ovo. Fora de si também não. De repente olho o ovo na cozinha e penso em comida. Está se fazendo a metamorfose em mim. Fora do ovo que se come, o ovo não existe."


Neste parágrafo Clarice volta a falar da galinha: sua felicidade, suas perdas e seus ganhos. Suas penas para amenizar, suavizar a travessia ao carregar o ovo. Seu prazer. Mas continua não entendendo o ovo. E Clarice muda o discurso. Deixa de falar do ovo e da galinha para começar a falar de agentes.

Nos agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos reveladoras, mas às vezes nos reconhecemos e a isso chamamos amor. Então não é necessário o disfarce: embora não se fale. Também não se mente, embora não se diga a verdade, também não e necessário dissimular. E o texto continua, nesse parágrafo falando do amor, da vaidade, desilusão. Do amor que enriquece, faz referência à inveja, ao prazer como uma doação recebida sem orgulho.

O parágrafo termina dizendo que nos foi imposta uma natureza toda adequada ao prazer que facilita, torna menos penoso o prazer.

No parágrafo que segue o texto fala dos agentes que se frustrados se suicidam, de outros que deixam de viver por motivos diversos. Até o fim o parágrafo faz menção à existência, à vida em si. Traz o problema da galinha para a existência humana que o texto chama de agentes. Fala em morte, ingenuidade, tolice, lealdade, são agentes presentes na natureza humana, que o agente não vê, não conhece assim como a galinha não vê, e não conhece o ovo, mas que carrega dentro dela com dificuldades. O parágrafo se completa da seguinte forma. Para os que sucumbem e se tornam individuais é que existem as instituições, a caridade, a compreensão que não discrimina motivos a nossa vida enfim.

Nos últimos parágrafos o narrador volta à realidade. Como começou a narrativa ele a termina. O ovo que estava sobre a mesa e que provocou toda essa reflexão, estava agora na frigideira pronto para ser comido pelas crianças que saiam de todos os lados. "Viver é eternamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir. Viver é fazer, é fazer rir dos mistérios, o meu mistério é de eu ser apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades."

O texto continua dissertando sobre a vida cotidiana, dos trabalhos, das liberdades, da corrupção. E também o tempo que me deram e que nos dão apenas para que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas, inteiramente esquecidas do ovo (ovo-vida).

Neste parágrafo estão registradas as reclamações de alguém que representa toda a humanidade, e diz: "ou é isso mesmo que eles querem que me aconteça. Exatamente para que o ovo se cumpra? Liberdade ou estou sendo mandada? Minha revolta é que para eles eu não sou nada, sou apenas preciosa. Com o dinheiro que me dão ando ultimamente bebendo. Nem meu espelho reflete mais um rosto que seja meu. Ou sou agente ou traição mesmo."

O texto termina com a resignação do narrador. Aceita tudo que lhe é cobrado. Dorme o sono dos justos por saber que sua vida fútil não atrapalha a marcha dos tempos ela sabe que a querem ocupada e distraída. Lamentação continua: "eles me querem como instrumentos do trabalho deles, de qualquer modo era só instrumento que eu poderia ser, pois o trabalho não poderia ser mesmo meu." O texto termina como começou, com o ovo:

"por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu interesseiro esquecimento. Pois o ovo é um equívoco.
Diante de minha adoração possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas se ele for esquecido. Mas se eu fizer apenas o sacrifício de viver apenas a minha vida e de esquecê-lo. Se o ovo for impossível.
Então, livre, delicado, sem mensagem alguma para mim talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até essa janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada baixe do nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminado-a de minha palidez."


CEM ANOS DE PERDÃO

Neste breve conto, também passado nas ruas de Recife, Clarice Lispector aborda novamente o tema da rosa, que lhe é tão caro.

Em “Cem anos de perdão” ela fala de outra fantasia, tornada talvez realidade, e cuja satisfação da conquista se assemelha a uma visita aos bairros ricos da cidade, diferentes do seu, onde em vez de sobrados simples como aquele em que mora há imponentes palacetes cercados de pomares e jardins, que despertam a sua admiração e cobiça.

O relato memorialístico lembra a menina Clarice, com uma amiguinha, olhando “com a cara imprensada nas grades”, estrangeiras e ávidas, o mundo de beleza e fartura que lhes é vedado, do qual se sentem exiladas e no qual são, efetivamente, proibidas de entrar. Elas olhavam para os palacetes e disputavam a posse imaginária deles.

O enredo se desenvolve em torno dos cálculos da menina para roubar uma rosa de um jardim. O objeto do roubo é tão pequeno para a importância que lhe dá a autora, que chega a produzir uma suspeita no leitor.

Ao contrário dos demais contos, nos quais ela implora a outros a satisfação de seus desejos, ou cede à frustração dos mesmos, neste conto ela não espera nem se conforma, ao contrário, tece os seus ardis e vai em busca daquilo que deseja, sem se importar com as conseqüências. É como se toda aquela exuberância e alegria alheias pudessem ser experimentadas por vias sorrateiras, ilegais, mas tão legítimas quanto quaisquer outras.

A menina apanha a rosa, tomando cuidado para não ser vista.

Enquanto ela colhia as rosas a fim de levar para casa, a colega vigiava.

As duas, usando dessa estratégia, uma colhia, a outra vigiava, passaram a furtar rosas com freqüência. Além de rosas, furtavam também pitangas. “Ladrão de rosas e pitangas têm cem anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem pra ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens.”

O conto é permeado por símbolos: há a alusão ao jardim ou pomar, que evoca o Paraíso bíblico; há a interdição às crianças, ou aos não-iniciados, da experiência das delícias e dores do conhecimento; há os diversos motivos ocultistas que ligam à paixão física à Paixão mística, como a rosa e seus espinhos. O erotismo não se expressa explicitamente, portanto, mas na escolha dos objetos roubados: rosas e pitangas; no motivo elementar e ausente do roubo: roubava simplesmente para possuir as rosas, para comer as pitangas; mas, sobretudo, nas descrições ardentes e sensuais da flor e do fruto, cuja adjetivação generosa não deixa dúvidas quanto ao papel alegórico desses elementos na narrativa: “A flor soberana, de pétalas grossas e aveludadas, com vários entretons de rosa-chá. No centro dela a cor se concentrava e seu coração quase parecia vermelho”. Vermelho como as pitangas, que “escondidas na folhagem era preciso buscar às apalpadelas cegas, até sentir o úmido da frutinha”. O colher das pitangas, que muitas vezes, na sua “pressa”, deixava-lhe os dedos “como ensangüentados”, imagem que também é utilizada na descrição da colheita da rosa: “Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos”, chega a sugerir sucessivos defloramentos, dedução que a autora reforça no último parágrafo, quando diz que “as pitangas pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens”.

Não deixa de ser estranho a autora atribuir à menina o papel de defloradora de virgens. Mas não há como negar que a descrição das rosas e das pitangas são sugestivas evocações do órgão sexual feminino. A evidência da proibição e a presença marcante de uma culpa que deveria, mas não é sentida, são contrapostas à excitação do roubo e à detalhada descrição do processo, feito a duas: “a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava”. A satisfação do resultado contribui para a perpetuação da brincadeira: “Foi tão bom. Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas”.

Uma confissão íntima, velada, de algum jogo sexual infantil, arrancado alegoricamente à memória culpada (por não sentir culpa) da mulher adulta? Um texto ocultista, que esconde na aparente simplicidade do tema uma mensagem vedada aos não-iniciados? Uma alusão metalingüística à natureza do exercício do seu mestrado literário? “Não me arrependo” – diz ela, afinal. “Ladrão de rosas e de pitangas tem cem anos de perdão”.

A LEGIÃO ESTRANGEIRA

O conto começa com a protagonista lembrando-se de Ofélia e seus pais que conhecera, mas há muito tempo não via mais. “Estou tentando falar daquela família que sumiu há anos sem deixar traços em mim”.

A protagonista, preocupada com a família que foi embora sem dizer para onde, surpreendeu-se com o aparecimento de um pinto na sua casa, doado por alguém, não disse quem, bem na véspera do natal.

Conta a protagonista, da admiração de todos na casa, seu marido e seus filhos, todos ficaram surpresos, tentando adivinhar o que o pinto estava fazendo ali nessa ocasião. “Mas o natal é amanhã, disse acanhado o menino mais velho. Sorrimos desamparados curiosos”.

A protagonista narradora define o fato do pinto como um sentimento que vai se modificando como a água que vai se transformando a cada ocasião que se lhe apresenta: “mas sentimentos são de um instante. Em breve como a mesma água já é outra quando o sol a deixa mais leve, e já é outra quando se enerva e tenta morder uma pedra, é outra ainda no pé que mergulha – em breve já não tínhamos no rosto apenas aura e iluminação. Em torno do pinto estávamos bons e ansiosos”.

Ela, a protagonista narradora, fala da bondade e o efeito que ela provoca em cada pessoa de sua família e nela. No marido rapidez e severidade, nos meninos, um ardor, e nela protagonista, intimida. Como a água os sentimentos iam se transformando. “Daí a pouco olhamos enredados pela falta de habilidades de sermos bons, e o sentimento já era outro, da falta de bondade para tínhamos no rosto a responsabilidade de uma aspiração, o coração pesado de um amor que já não era mais livre. Passado o momento do pinto, os adultos já o tinham esquecido, mas os meninos não, ficara uma indignação.

Não só indignação, mas também acusação de que nada fazíamos pelo Pinto e pela humanidade”. Constrangidos, pai e mãe ainda não haviam dito para os filhos que as coisas são assim mesmo. Então a protagonista confessa o quanto é difícil dizer para os filhos de que as coisas eram assim mesmo as aceitávamos.

“E o pinto continuava ali sobre a mesa, piando cheio de medo. Não tinha como acalmá-lo porque ele não conhecia sentimentos”. Nesse momento em que o pinto estava ali sobre a mesa com medo, a protagonista desejou que o pinto fosse igual os humanos e sentisse como os humanos o sentimento do amor e soubesse que ali, ele, como obra de Deus, estava sendo amado.

“E o menino menor não suportou mais, e perguntou: você quer ser a mãe dele? Eu disse que sim” Os quatro meninos ficaram então esperando que ela tomasse uma atitude em favor do pinto. Ela, a protagonista narradora fala dos sentimentos e do amor que o pinto estava provocando na família. Ela como mãe, como o nascimento é próprio das mães. Tentou isolar-se do problema.

Diante de tamanha crise no amor a protagonista se presta a uma reflexão e percebe que um dia, sem ela saber com certeza a amaram.

Então estendeu a mão e pegou o pinto.

Ao pegar o pinto lhe veio à lembrança novamente Ofélia. Agora ela relembrava não só Ofélia. Mas também seus pais. Com carinho relembrou do dia no banco da praça em que conversava com a mãe de Ofélia, uma mulher trigueira que fazia os homens a olhar pela segunda vez, do seu desejo de fazer um curso para fazer bolos. Lembrou-se também do pai de Ofélia, homem bem apanhado com o firme desejo de se dar bem com seu ramo de negócio, gerente de hotel ou até mesmo como dono de um.

Mas quem eram as personagens que compunham aquela família misteriosa?

A protagonista conta que o contato com a família se fez através de Ofélia. Ofélia, menina inteligente, como descreve a narradora, sentava-se com jeito, tinha opinião formada sobre tudo.

Dava conselhos para a educação dos filhos, dava instruções e advertências. Banana não se mistura com leite. Mata. Para tudo tinha uma resposta. A última palavra sempre era dela. Tinha o hábito de dar opinião sobre tudo, criticar procedimentos e analisar.

Uma vez chegou a chamar a protagonista de esquisita. Esquisita porque comprava verduras demais para a semana e acabava estragando na geladeira, outra vez porque e comprou de menos e não chegava até o fim da semana. Tudo isso irritava a protagonista que sempre tentava induzida ao erro, sempre em vão, salvo um dia quando lhe foi perguntado o que era geografia e ela respondeu: “Geografia é um modo de estudar”. O erro lhe valeu conselhos como: vai errando devagar. É errado que se aprende.

Ofélia era uma menina inteligente, mas a protagonista desejava livrar-se dela: existe uma menina mais antipática? Um dia parecia que este dia se aproximava e rapidamente.

Bateram a porta da casa para a surpresa da protagonista narradora, lá estava a mãe de Ofélia.

Por acaso Ofélia Maria esta aí?

Recebendo resposta afirmativa, a mãe de Ofélia parecia estar ofendida e reprovando as visitas de Ofélia na casa da vizinha. Esta atitude da mãe deixou preocupada a protagonista, pois nunca havia feito nada que desagradasse a menina. Enquanto elas iam embora ela percebeu o quanto a mãe protegia a filha. Finalmente, pensou ela, Ofélia não vira mais aqui. A mãe dela deve me odiar, pensa que eu quero roubar a sua filha.

Não foi o que aconteceu, Ofélia continuou a visitar a casa da amiga. Voltava sempre para reparar nos erros da amiga dar-lhe conselhos.

O que Ofélia realmente queria? Nem mesmo a protagonista tinha a resposta.

Mais tarde Ofélia apareceu para a visita costumeira. Assuntou-se com a presença do Pinto e fez perguntas, todas respondidas.

A partir daí o pinto gerou uma situação de consciência na protagonista. A menina inteligente virou criança. A protagonista que antes via a menina como chata, agora a passa ver como uma criança que quer resposta da vida. A menina se sentiu impelida a roubar o pinto, que segundo sua dona, esta atitude mostrou que a menina tinha inveja porque ela não tinha aquele pinto.

“Depois que o tremor da cobiça passou, o escuro dos olhos tremeu todo: não era a um rosto sem cobertura que eu a expunha agora eu a expusera ao melhor do mundo: a um pinto.

Sem me verem, seus olhos quentes me fitavam numa abstração intensa que se punha em íntimo contato com minhas intimidades”.

A menina ali, diante da protagonista, estava cheia de dúvidas, de espanto, com a pergunta estampada no rosto e nos olhos cuja resposta a protagonista não dava por conta da moralidade.

A protagonista foi percebendo a angústia da menina. Como também a sua angústia de ver aquela menina ali diante dela se transformando numa criança e desejando ser dela ou se ala mesma. Ofélia voltou à pergunta: “É um pinto?

Ele está na cozinha.

Você pode ir à cozinha brincar com o pintinho”.

Aqui a protagonista deixa para a menina a escolha de ir ou não ir: “sei que não deveria ter dado a escolha.

Só vão ver o pintinho se você quiser”.

A partir daí para diante a protagonista faz uma análise psicológica do aceitar e do odiar.

Era preciso que a menina a odiasse para que ela, a protagonista pudesse resistir a seu ódio, ao seu sofrimento.

Reclama a protagonista: ao me usar me machucava com força; ela me arranhava ao tentar agarrar-se a minhas paredes lisas. Afinal sua voz soou em baixa e lenta raiva: - Vou ver o pinto na cozinha.

Com a dignidade e a elegância de sempre foi até a cozinha, mas voltou logo.

“Mas é um pintinho, disse. Ri, Ofélia olhou-me ultrajada. De repente riu, rimos juntas. Ofélia pôs o pintinho no chão e começou a brincar com ele, se corria atrás dele”.

Passada a êxtase pelo pinto, finalmente Ofélia resolveu ir embora. Depois de ir à cozinha levar o pinto despediu-se da amiga e saiu. A narradora protagonista conta assim o final da história de Ofélia: "Relutante foi afastando devagar a cadeira do caminho. Até parar devagar à porta da cozinha. No chão estava o pinto morto. Ofélia, inutilmente tentei eu atingir o coração da menina calada. OH! Não se assuste muito, às vezes a gente mata por amor, mas juro que um dia a gente esquece, juro. Eu estava agora cansada, sentei-me no banco da cozinha.
Sentada como se todos esses anos eu tivesse com paciência esperado na cozinha, Como na páscoa nos é prometido, em dezembro ele volta. Ofélia é que não voltou: Cresceu. Foi ser a princesa hindu por quem no deserto sua tribo espera".
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OS OBEDIENTES

Neste conto é enfocada a vivência de um casal, e a voz narrativa tem papel preponderante para interpretar os “acontecimentos” sob uma ótica de ironia, que desmascara muitos valores da sociedade patriarcal.

Trata-se de um relato singular, que recria a rotina desmotivadora de um casal, que vai vivendo por viver, sem ter consciência nem de sua realidade medíocre, nem da realidade que os cerca. São pessoas anônimas, iguais a outras pessoas, que se submetiam ao irremediável da vida.

Um casal viveu muitos anos junto. Sua harmonia conjugal era aparentemente perfeita. Mas não tinham emoções. Cumpriam com perfeição a rotina, totalmente obedientes ao que se convencionou chamar de realidade de um casal, inclusive quanto à fidelidade.

Nem individualmente nem em comum faziam ou diziam algo de inconveniente.

Já ultrapassada a idade de 50 anos, ambos começaram a ter alguns sonhos. Cada um pensava timidamente em seu interior sem falar: ele imaginava que muitas aventuras amorosas significariam vida; ela, que outro homem a salvaria.

Certo dia, ela estava comendo uma maçã e sentiu quebrar-se um dente da frente.

Olhou-se no espelho do banheiro, “viu uma cara pálida, de meia-idade, com um dente quebrado, e os própiros olhos...” Então, jogou-se pela janela.

O marido continuou existindo; “seco inesperadamente o leito do rio, andava perplexo e sem perigo sobre o fundo com uma lepidez de quem vai cair de bruços mais adiante.”

A REPARTIÇÃO DOS PÃES

O assunto do texto é um almoço para participantes, como Clarice esclarece: ”Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo”. Trata-se de um almoço de obrigação oferecido num sábado, dia desejado por todos, e no entanto, era obrigação permanecer no almoço.

Clarice, para reforçar o estado de espírito dos convidados, usou como metáfora o trem descarrilado que obriga a todos os passageiros permanecerem em um lugar estranho, entre estrangeiros, desconhecidos que não conhecem o prazer de cada um que ali se encontra. O narrador, um dos convidados, foi narrando a insatisfação de perder o sábado com um almoço que poderia ter sido trocado por uma quinta-feira à noite. O narrador lamenta também que a dona da casa não se importava com o grupo heterogêneo: um sonhador outro resignado. Para justificar a longa espera pelo almoço, Clarice, continuou se utilizando da metáfora do trem: ”...Como pela hora da partida do primeiro trem, qualquer trem” ou a metáfora do cavalo: menos refrear o cavalo”. Finalmente o almoço.

Antes do almoço, a dona da casa, começou a lavar os pés dos estrangeiros. Com isso Clarice fez menção á última ceia quando Jesus lavou os pés de seus discípulos em sinal de Humildade. Já à mesa o narrador detalha a comida que estava sobre a mesma.

Começa dizendo que sobre a mesa se encontrava uma toalha branca, sobre a toalha amontoavam-se espigas de trigo. Descrita a mesa, o narrador começou a descrever todas as iguarias que estavam sobre ela além do trigo: “maçãs vermelhas, enormes cenouras, abacaxis malignos... Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para redondo ar”. Nas bilhas estava o leite, o vinho quase negro de tão pesado. Tudo diante de nós.

Tudo limpo do retorcido desejo humano. Tudo como é, não como quiséramos. Não havia holocausto, tudo queria ser comido. O narrador continua descrevendo o almoço como dizendo estarem todos ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. “Comi aquela comida e não o seu nome”. Finaliza dizendo que: “Nós somos fortes e nós comemos. Pão é amor entre estranhos”.

UMA ESPERANÇA

Uma esperança, um inseto que se chama esperança, pousou na parede da casa da narradora. Ela e os filhos ficaram observando a esperança andar, sem voar (“Ela esqueceu que pode voar, mamãe.”)

Uma aranha saiu de trás do quadro e avançou em direção à esperança. Embora “dê azar” matar aranha, ela foi morta por um dos filhos.

A narradora se espanta de não ter pego a esperança, ela que gosta de pegar nas coisas. Lembrou-se de certa vez que uma esperança pousou no seu braço. “Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada”.

Leia o conto na íntegra:

Aqui em casa pousou uma esperança, não a clássica que tantas vezes verifica-se ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre, mas a outra, bem concreta e verde: o inseto. Houve um grito abafado de um dos meus filhos:

- Uma esperança! E na parede bem em cima de sua cadeira! Emoção dele que também unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço, mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não podia ser.

- Ela quase não tem corpo, queixei-me.

- Ela só tem alma, explicou meu filho. E como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças. Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre os dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.

- Ela é burrinha, comentou o menino.

- Sei disso, respondi um pouco trágica.

- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.

- Sei, é assim mesmo.

- Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.

- Sei, continuei, mais feliz ainda.

Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando, vigiando-a como se vigiava na Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não apagasse.

- Ela se esqueceu que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar devagar assim.

Andava mesmo devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo. Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha, não uma aranha, mas me parecia “a” aranha, andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse francamente, confusa sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:

- É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte...

- Mas ela vai esmigalhar a esperança! Respondeu o menino com ferocidade.

- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros.

- Falei sentindo a frase deslocada e ouvindo certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada; eu lhe diria apenas; você fez o favor de facilitar o caminho da esperança.

O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e com a nossa esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em nossa casa, alma e corpo, mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde e tem uma forma tão delicada que isso explica porque eu que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la. Uma vez, aliás, agora que me lembro, uma esperança bem menor do que esta, pousara no meu braço, não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: e essa agora? Que devo fazer? Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E acho que não aconteceu nada.


MACACOS

Perto do Ano-Novo, a família ganhou um mico de presente. Era um macacão ainda não crescido, que não dava sossego a ninguém. A dona da casa-narradora estava exausta.

Uma amiga entendeu o sofrimento dela e chamou uns meninos do morro. Eles levaram o macaco.

Um ano depois, a narradora comprou uma macaquinha nas mãos de um vendedor em Copacabana. Era delicada e recebeu o nome de Lisette. Vestiram-na de mulher e ela encantava a todos.

Três dias depois, Lisette estava na área de serviço sendo admirada pela família. Ela encantava sobretudo pela doçura. Só que não era doçura, era a morte chegando. Levaram-na rapidamente para o veterinário, enfrentando um trânsito difícil. Ela estava tendo falta de oxigênio. Deixaram-na na clínica.

No dia seguinte, morreu. Uma semana depois, o filho mais velho disse para a mãe: “Você parece tanto com Lisette! ‘Eu também gosto de você’, respondi.”

OS DESASTRES DE SOFIA
Este longo conto também alude, como no conto "Felicidade Clandestina", a um livro infantil: Os Desastres de Sofia, da Condessa de Ségur, grande sucesso na França e no Brasil até meados do século XX. Também neste caso a alusão não parece ser gratuita. Muitos elementos neste livro são de importância fulcral para a autora. O nome da menina, por exemplo, que significa “sabedoria”, entra em choque com a sua atuação dita “desastrosa” no mundo, narrada sob a forma de episódios onde a efabulação conduz a uma inevitável “moral da história”, de cunho fortemente religioso e repressor. Expressa por um adulto, em geral a mãe, que ocupa o lugar da educadora, esses ensinamentos direcionam-se sempre ao julgamento e à condenação dos atos da criança, desfiando os itens de uma cartilha de normas sobre a formação de uma “menina exemplar”.

O conto “Os desastres de Sofia”, focaliza o ambiente escolar. A menina Clarice é mais velha que Sofia, tem nove anos. Como Sofia, ela também trava uma disputa com um adulto, não a mulher e mãe, mas um homem e professor. E como Sofia, também sai derrotada, mas por razões diferentes. Enquanto a Condessa derrota a criança com o seu modelo de adulto perfeito e ideal, Clarice mostra como o seu esboço de criança imperfeita e rebelde acaba triunfando sobre o adulto falho e incompetente que ela tenta corrigir, para que ele a ensine a contento. Sua vitória é experimentada, portanto, como uma derrota: descobrindo-se mais forte do que o adulto, a criança sente-se desamparada e aterrorizada num mundo sem regras e sem certezas.

A relação professor-aluno é um tema de predileção, e mesmo recorrente na obra de Clarice Lispector, desde o seu primeiro romance, Perto do coração selvagem.

Neste conto, a relação da menina Clarice com o professor é intensa. Começa como um desafio de sua parte, que gera um aborrecimento da parte dele. As provocações da criança vão aumentando, e a irritação do homem vai ficando maior e mais forte, como num jogo de sedução erótica sem envolvimento sexual. Como diz Clarice: “Não o amava como a mulher que eu seria um dia, amava-o como uma criança que tenta desastradamente proteger um adulto, com a cólera de quem ainda não foi covarde e vê um homem forte de ombros tão curvos”.

A crítica ao sistema educacional que diviniza um dos pólos do aprendizado e demoniza o outro é tão forte que a própria Clarice recua: “Não, talvez nem seja isso. As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito.” Mas a dicotomia está estabelecida nesses termos. O “santo” professor e a menina “prostituta”, disposta a vender o seu amor por uma promessa de aceitação, ainda que precisando pagar por isso o alto preço já pago pela Sofia da Condessa: a perda de si mesma. Para ser amada, a menina Clarice, como todas as crianças em geral, “ávidas matérias de Deus”, pujante de afeto em estado bruto, estava disposta a se entregar inteiramente, e nesta entrega se perder para sempre. Ela aguardava, com esperança e total confiança, entrar no mundo dos adultos, no qual pensava poder se libertar de suas angústias e medos infantis. Daí a revolta contra o professor, um homem cujas fraquezas eram por demais evidentes: “Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o abandonara, mudara de profissão, e passara pesadamente a ensinar no curso primário”. Daí também a atração por ele, como se intuísse que precisava arrancar a sua máscara para revelar o desconhecido que ali se ocultava, a fim de que ele lhe revelasse a verdade que seria a derrota de sua própria ilusão.

Não há neste conto, como nos outros, referências explícitas às ruas do Recife, mas ao sobrado onde Clarice morou na Praça Maciel Pinheiro. Do colégio também não há referências, exceto algumas descrições da ampla e arborizada área do recreio, mas sabe-se que a autora estudou na escola pública João Barbalho e freqüentou o Ginásio Pernambucano em Recife. A referência ao sobrado aparece como uma ruptura na evolução temporal da narrativa. A autora interrompe o relato e salta quatro anos à frente da história, mostrando a menina Clarice já aos treze anos, “toda composta e bonitinha como um cromo de Natal”, desmoronando “como uma boneca partida” ao receber a notícia da morte do professor. Após esse ligeiro flash, que mostra a importância do professor na vida da menina, e conseqüentemente a importância do aparentemente banal episódio que se vai narrar, o conto atinge o seu clímax, que também se relaciona, como em "Felicidade Clandestina", com uma revelação de ordem literária. Essa revelação é feita através de um longo diálogo, tecido de maneira muito similar à técnica cinematográfica da câmara lenta, no qual se assiste ao desmoronamento das máscaras dos personagens. Assim, uma inesperada criança aparece sob a máscara do professor e uma inesperada mestra aparece sob a máscara da criança.

A revelação do aprendizado é profunda. Descrita como um verdadeiro e desentranhado parto, com vísceras expostas e tudo, o homem se percebe, com imprevista alegria, como aprendiz e liberto, e a menina se descobre, com surpresa e pavor, como mestra e libertadora. Os papéis tradicionais da relação educador-educando se invertem, já não mais relacionados ao mero repasse/recepção de informações, que seriam esperados na relação convencional, e os indivíduos envolvidos mergulham numa radical descoberta de si mesmos.

Como vimos, a narradora gostava do professor gordo, grande, silencioso, feio. Era atraída por ele. Mas infernizava as aulas. A menina fazia este jogo: amava-o atormentando-o. Não estudava nem aprendia nada.

Tudo se passa em torno de uma redação. O professor solicita à classe que reescreva “com suas próprias palavras” uma dessas histórias de cunho edificante, que ele acaba de ler em voz alta, na qual um homem, após buscar um tesouro em terras estrangeiras, consegue ficar rico no próprio quintal, através do seu trabalho. A moral da história, portanto, recaía na clássica conclusão de que o trabalho árduo era o único meio de se chegar a ter fortuna.

Para desafiar o professor, como de hábito, a menina escreve a sua composição invertendo deliberadamente o final da história: “Não consigo imaginar com que palavras de criança teria eu exposto um sentimento simples mas que se torna pensamento complicado. Suponho que arbitrariamente contrariando o sentido real da história, eu de algum modo já me prometera por escrito que o ócio, mais que o trabalho, me daria as grandes recompensas gratuitas, as únicas a que eu aspirava. Eu daria tudo o que era meu por nada, mas queria que tudo me fosse dado por nada. Ao contrário do trabalhador da história, na composição eu sacudia dos ombros todos os deveres e dela saía livre e pobre, e com um tesouro na mão”.

De que maneira aquilo atingiu o professor infeliz, “monte de compacta tristeza” que trabalhava por obrigação, com indisfarçável aborrecimento, e que ocultava um passado misterioso, não se pode saber. Mas certamente atingiu-o, a ponto de ele, que jamais se alegrava e jamais se dirigia a ela, falar-lhe com atenção e carinho, e esboçar o sorriso mais sacrificado que Clarice jamais terá visto na vida, tal é a maneira como o descreve: “E bem devagar vi o professor todo inteiro, vi que era muito grande e muito feio, e que ele era o homem da minha vida. Aquilo que eu via era anônimo como uma barriga aberta para uma operação de intestinos. Vi uma coisa se fazendo na sua cara, o mal-estar já petrificado subia com esforço até a sua pele, era a careta vagarosamente hesitando e quebrando uma crosta, mas essa coisa que em muda catástrofe se desenraizava, essa coisa ainda se parecia tão pouco com um sorriso como se um fígado ou um pé tentassem sorrir, não sei. (...) Até que o esforço do homem foi se completando todo atento, e em vitória infantil ele mostrou, pérola arrancada da barriga aberta – que estava sorrindo”.

O processo inverso acontece com a menina, que, afogueada pela corrida e sorridente pelo hábito, diante da transformação do professor sente-se recuar e colar-se à parede, enquanto seu corpo inteiro vai-se reduzindo, como o do gato da história de Alice no país das maravilhas, a um sorriso sem rosto. Acompanhamos lentamente o seu processo de desaparecimento enquanto criança: o riso despreocupado e confiante amarelando-se, artificial; uma gota de suor escorrendo lentamente pela testa e pelo nariz até dividi-lo ao meio, e finalmente o seu completo desaparecimento numa desusada, inusitada e madura seriedade.

A transformação atinge a ambos com inesperada violência. Enquanto a menina, num insight precoce, percebe a sua missão no mundo como escritora, “Mas se antes eu já havia descoberto em mim todo o ávido veneno com que se nasce e com que se rói a vida – só naquele instante de mel e flores descobri de que modo eu curava: quem me amasse, assim eu curaria quem sofresse de mim”, o professor se revela desamparadamente feliz “como um menino que dorme com os sapatos novos”. Um tremendo bem havia feito a composição de Clarice àquele homem, sem que ela desse por isso ou tencionasse fazê-lo. Era à revelia de si mesma que suas palavras atingiam os outros e os transformavam, e a consciência desse poder advindo de um estranho talento conduz a menina à terrível conclusão: “Tudo o que em mim não prestava era o meu tesouro”.

A revelação para ela é tão forte que terá crises de vômito em casa. O que o professor lhe ensinava, sem querer, era sério demais para ser apreendido com tranqüilidade pelos seus nove esperançosos anos. A partir daí passava a saber que não haveria segurança mais adiante, porque não havia uma verdade interditada, na posse da qual sairia confiante pelo mundo dos adultos, ilusão que a escola e a literatura infantil edificante se compraziam em reforçar: “Na minha impureza eu havia depositado a esperança de redenção nos adultos. A necessidade de acreditar na minha bondade futura fazia com que eu venerasse os grandes, que eu fizera à minha imagem, mas a uma imagem de mim enfim purificada pela penitência do crescimento, enfim liberta da alma suja de menina. E tudo isso o professor agora destruía, e destruía o meu amor por ele e por mim”.

Ao lado dessa revelação, há outra relacionada com a sua profissão. A literatura seria para ela uma penitência, o exercício de um apostolado onde se faria amada para curar os que sofrem. Curar com as belas mentiras da invenção, avançando lentamente para perceber que, muitas vezes, essas mentiras são mais verdadeiras do que as verdades do senso-comum. O professor terá sido, talvez, o seu primeiro contato com o efeito dessa sua irreverente escritura, nascente no mundo; daí a sua importância para a menina e a importância desse episódio, tão longamente rememorado, para a autora.

No final do conto, Clarice parodia a clássica história infantil de "Chapeuzinho Vermelho", também permeada de erotismo e admoestação às jovens sobre os perigos relacionados ao crescimento, mas descreve os seres humanos, indistintamente, como feras, feras que se interrogam assustadas. Na sua narrativa destituída de maniqueísmos já não há a menina ingênua e o lobo malvado, apenas duas feras numa relação de ódio e amor, cujas longas unhas tanto servem “para arranhar de morte” como para “arrancar espinhos mortais”; cuja boca de fome tanto serve para “morder” como para “soprar”; cujas mãos “ardem” e “prendem”. O caçador e o lobo, a santa e a prostituta convivem em cada homem e em cada mulher, em todas as suas idades ao longo da vida. Na conclusão do Chapeuzinho Vermelho de Clarice, portanto, as duas feras olham intimidadas para as suas próprias garras, “antes de se aconchegarem uma à outra para amar e dormir”.

No conto “Os desastres de Sofia”, Clarice se reporta à infância para falar, com extrema poesia, da sua descoberta como escritora, homenageando com carinho o mestre, que só atuou como tal quando procedeu como aprendiz, fazendo-a perceber o poder das palavras: o de suavizar a dor de quem não ama, no sentido erótico e esotérico que confere ao termo. Escrever como Clarice, invertendo a moral das histórias, é um duro ato de amor, porque pode libertar, fazer desmoronar, desentranhar o ser que se esconde sob as máscaras impostas pela sociedade e reforçadas por todos os sistemas pedagógicos do mundo, e isso não se faz sem medo e sem sofrimento.
A CRIADA

Descrição poética de Eremita, a criada que fazia os serviços domésticos como alguém talhado exatamente para aquilo. Parecia viver num mundo profundo e misterioso, mas sem a verdadeira consciência da profundidade da floresta em que mergulhava.

Eremita que nada mais apresentava a não ser o perfil de um criada: nem bonita nem feia, cumpria seus deveres sem competência e sem desleixo; mas, por trás da figura-padrão e das frases convencionais pronunciadas convencionalmente, escondia-se um mundo interior indecifrável para qualquer pessoa, inclusive para ela mesma.

De vez em quando, se interiorizava, se desligava; quando retornava desse passeio por sua floresta íntima, estava mais calma e ia consolidando a sua doçura próxima das lágrimas.

Nada em Eremita denunciava perigo, a não ser uma maneira rápida de comer pão. “No resto era serena. Mesmo quando tirava o dinheiro que a patroa esquecia sobre a mesa, mesmo quando levava para o noivo em embrulho discreto alguns gêneros da despensa. A roubar de leve ela também aprendera em suas florestas.”

A MENSAGEM

Conto cujo tema é a dificuldades de relacionamento, sobre dois estudantes, que tentam não se ver como homem e mulher.

Um rapaz de dezesseis anos e uma moça de dezessete, colegas de escola sem amizade, um dia se sentiram ligados um ao outro porque ela disse que sentia angústia e ele também.

A partir de então se tornaram íntimos. Intimidade que não significava sexo nem amor. Eles se sentiram ligados porque ambos queriam ser autênticos, sinceros, diferentes dos outros. Não se viam como homem e mulher, mas como dois seres angustiados, à procura de algo que eles não sabiam o que fosse. Vagamente, confusamente, achavam-se portadores de uma mensagem. Mas o que era isso?

Saindo do colégio no último dia letivo, os dois caminhavam numa rua próxima do Cemitério S. João Batista, no Rio. A calçada era estreita e os ônibus passavam rentes. De repente, os dois se viram colados a uma casa velha. Pararam diante dela, olharam para a fachada. Em seu íntimo cada um foi se descobrindo ali, parados: ele era apenas um rapaz e ela, uma moça. Não tinham mais o que se dizer e por que continuarem juntos.

Ela despediu-se, correu para um ônibus que estava parado. Entrou subindo como se fosse um macaco, pensou ele, vendo-a acomodar-se lá dentro.

A moça saíra envergonhada por se sentir mulher; o rapaz tinha acabado de nascer homem. “Mas, atolado no seu reino de homem, ele precisava dela. Para quê? (...) para não esquecer que eram feitos da mesma carne, essa carne podre da qual, ao subir no ônibus, como um macaco, ela parecia ter feito um caminho fatal.” O que estava acontecendo a ele naquele momento em que viu a moça entrar no ônibus daquele jeito? Nada! Apenas um instante de fraqueza e vacilação. Só que agora ele se sentia fraco para resistir ao que os outros tentavam ensinar-lhe para ser homem. “Mas e a mensagem?! a mensagem esfarelada na poeira que o vento arrastava para as grades do esgoto. Mamãe, disse ele.”

MENINO A BICO DE PENA

Neste conto o adulto, ao escrever para a criança, desenha-a. A autora se dispõe a uma análise que visa “acompanhar no menino o nascimento da linguagem e do sujeito”.

O narrador busca a visão de criança (do bebê) reconhecendo o mundo e o mostra desse ângulo inusitado.

As experiências espaciais do bebê, a baba, o sono, a mãe, o aconchego, a solidão, a percepção das coisas, a segurança da mãe, a fralda seca.

É um conto sobre o qual é melhor não dizer, mas ler.

Um menino, que ainda não fala nem anda direito, está sentado no chão. Tenta dar alguns passos, cai; engatinha, baba. Depois a mãe o toma no colo, o faz dormir, troca a fralda dele e o ouve dar os primeiros sinais da fala.

UMA HISTÓRIA DE TANTO AMOR

Uma menina de Minas Gerais tinha duas galinhas, Pedrina e Petronilha. Cuidava delas como se fossem pessoas.

Certa vez, foi passar o dia fora e, quando voltou, Petronilha tinha sido comida pela família. Ficou contrariada. Mas a mãe lhe disse que foi pena as duas, ela e a filha, não terem comido algum pedaço de Petronilha, pois, quando a gente come os bichos, eles ficam parecidos com a gente, assim dentro de nós.

Pedrina morreu naturalmente. Morte apressada pela menina que, ao vê-la doente, colocou-a embrulhada num pano escuro, em cima de um fogão de tijolos.

Um pouco maiorzinha, a menina teve outra galinha, a Eponina. Esta foi comida ao molho pardo por toda a família, inclusive pela menina que, embora sem fome, quis que Eponina se incorporasse nela e se tornasse mais dela morta do que em vida. “Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens.”

Leia o conto na íntegra:

Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes conhecia a alma e os anseios íntimos. A galinha é ansiosa, enquanto o galo tem angústia quase humana: falta-lhe um amor verdadeiro naquele seu harém, e ainda mais tem que vigiar a noite toda para não perder a primeira das mais longíquas claridades e cantar o mais sonoro possível. É o seu dever e a sua arte. Voltando às galinhas, a menina possuía duas só dela. Uma se chamava Pedrina e a outra Petronilha.

Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela cheirava embaixo das asas delas, com uma simplicidade de enfermeira, o que considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva não é de se brincar. Então pedia um remédio a uma tia. E a tia : "Você não tem coisa nenhuma no fígado". Então, com a intimidade que tinha com essa tia eleita, explicou-lhe para quem era o remédio. A menina achou de bom alvitre dá-lo tanto a Pedrina quanto a Petronilha para evitar contágios misteriosos. Era quase inútil dar o remédio porque Pedrina e Petronilha continuavam a passar o dia ciscando o chão e comendo porcarias que faziam mal ao fígado. E o cheiro debaixo das asas era aquela morrinha mesmo. Não lhe ocorreu dar um desodorante porque nas Minas Gerais onde o grupo vivia não eram usados assim como não se usavam roupas íntimas de nylon e sim de cambraia. A tia continuava a lhe dar o remédio, um líquido escuro que a menina desconfiava ser água com uns pingos de café - e vinha o inferno de tentar abrir o bico das galinhas para administrar-lhes o que as curaria de serem galinhas. A menina ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem como a galinha têm misérias e grandeza (a da galinha é a de pôr um ovo branco de forma perfeita) inerentes à própria espécie. A menina morava no campo e não havia farmácia perto para ela consultar.

Outro inferno de dificuldade era quando a menina achava Pedrina e Petronilha magras debaixo das penas arrepiadas, apesar de comerem o dia inteiro. A menina não entendera que engordá-las seria apressar-lhes um destino na mesa. E recomeçava o trabalho mais difícil: o de abrir-lhes o bico. A menina tornou-se grande conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso quintal das Minas Gerais. E quando cresceu ficou surpresa ao saber que na gíria o termo galinha tinha outra acepção. Sem notar a seriedade cômica que a coisa toda tomava:

- Mas é o galo, que é um nervoso, é quem quer! Elas não fazem nada demais! e é tão rápido que mal se vê! O galo é quem fica procurando amar uma e não consegue!

Um dia a família resolveu levar a menina para passar o dia na casa de um parente, bem longe de casa. E quando voltou, já não existia aquela que em vida fora Petronilha. Sua tia informou:

- Nós comemos Petronilha.

A menina era uma criatura de grande capacidade de amar: uma galinha não corresponde ao amor que se lhe dá e no entanto a menina continuava a amá-la sem esperar reciprocidade. Quando soube o que acontecera com Petronilha passou a odiar todo o mundo da casa, menos sua mãe que não gostava de comer galinha e os empregados que comeram carne de vaca ou de boi. O seu pai, então, ela mal conseguiu olhar: era ele quem mais gostava de comer galinha. Sua mãe percebeu tudo e explicou-lhe:

- Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente, estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não temos Petronilha dentro de nós. É uma pena.

Pedrina, secretamente a preferida da menina, morreu de morte morrida mesmo, pois sempre fora um ente frágil. A menina, ao ver Pedrina tremendo num quintal ardente de sol, embrulhou-a num pano escuro e depois de bem embrulhadinha botou-a em cima daqueles grandes fogões de tijolos das fazendas das minas-gerais. Todos lhe avisaram que estava apressando a morte de Pedrina, mas a menina era obstinada e pôs mesmo Pedrina toda enrolada em cima dos tijolos quentes. Quando na manhã do dia seguinte Pedrina amanheceu dura de tão morta, a menina só então, entre lágrimas intermináveis, se convenceu de que apressara a morte do ser querido.

Um pouco maiorzinha, a menina teve uma galinha chamada Eponina.

O amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e não romântico; era o amor de quem já sofreu por amor. E quando chegou a vez de Eponina ser comida, a menina não apenas soube como achou que era o destino fatal de quem nascia galinha. As galinhas pareciam ter uma pré-ciência do próprio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha é sozinha no mundo.

Mas a menina não esquecera o que sua mãe dissera a respeito de comer bichos amados: comeu Eponina mais do que todo o resto da família, comeu sem fome, mas com um prazer quase físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do que em vida. Tinham feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, num ritual pagão que lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeu-lhe a carne e bebeu-lhe o sangue. Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens.


AS ÁGUAS DO MUNDO

O conto relata o banho matinal de uma mulher no mar. Este a mais ininteligível das existências não humanas; aquela, o mais ininteligível dos seres vivos.

Este texto de Clarice Lispector mostra a integração de um no outro: ela dentro do mar, ele dentro delas aos goles.

Às seis horas da manhã, a mulher entra no mar: este, o mais ininteligível das existências não humanas; ela, o mais ininteligível dos seres vivos.

Ela vai entrando, cumprindo uma coragem. Avançando, abre o mar pelo meio. Ela brinca com a água. Com a concha das mãos cheia de água, bebe em goles grandes. “E era isso o que lhe estava faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem.

Agora ela está toda igual a si mesma.”

Mergulha de novo, de novo bebe mais água. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, não recebe transmissões. Depois caminha na água e volta à praia. Agora, pisa na areia. “E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos escorridos são de um náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano.”

Leia o conto na íntegra:

Aí está ele, o mar, o mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar.

Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões.

Ela olha o mar, é o que se pode fazer. Ele só lhe é delimitado pela linha do horizonte, isto é, pela sua incapacidade humana de ver a curvatura da terra.

São seis horas da manhã. Só um cão livre hesita na praia, um cão negro. Por que é que um cão é tão livre? Porquê ele é o mistério vivo que não se indaga. A mulher hesita porque vai entrar.

Seu corpo se consola com sua própria exigüidade em relação a vastidão do mar porque é a exiguidade do corpo que o permite manter-se quente e é essa exigüidade que a torna livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio das seis horas. A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa hora da manhã, ela não têm o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no amr em simples jogo leviano de viver. Ela está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização. Nessa hora ela se conhece menos ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de , não se conhecendo, no entanto prosseguir. É fatal não se conhecer, e não se conhecer exige coragem.

Vai entrando. A água salgada é de um frio que lhe arrepia em ritual as pernas. Mas uma alegria fatal - a alegria é uma fatalidade - já a tomou, embora nem lhe ocorrera sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seus mais adormecidos sonos seculares. E agora ela está alerta, mesmo sem pensar, como um caçador está alerta, mesmo sem pensar. A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda- e abre caminho na gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode ser um pedido.

O caminho lento aumenta as coragem secreta. E de repente ela se deixa cobrir pela primeira onda. O sal, o iodo, tudo líquido, deixam-na por uns instantes cega, toda escorrendo - espantada de pé, fertilizada.

Agora o frio se transformou em frígido. Avançando, ela sobre o mar pelo meio. Já não precisa da coragem, agora já é antiga no ritual. Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar e retira uma cabeleira que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem. Brinca com a mão na água, pausada, os cabelos ao sol quase imediatamente já estão endurecendo de sal. Com a concha das mãos faz o que sempre fez no mar, e com altivez dos que nunca darão explicação nem a eles mesmos: com a concha das mãos cheia de água, bebe em goles grandes, bons.

E era isso o que estava lhe faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem. Agora está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe com o sal, os olhos avermelham-se pelo sal secado pelo sol, as ondas suaves lhe batem e voltam pois ela é um anteparo compacto.

Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão pois não precisa mais. Ela é a amante que sabe que terá tudo de novo. O sol se abre mais e arrepia-a ao secá-la, ela mergulha de novo: está cada vez menos sôfrega e menos aguda. Agora sabe o que quer. Quer ficar de pé parada no mar. Assim fica pois. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, bate. A mulher não recebe transmissões. Não precisa de comunicação.

Depois caminha dentro da água de volta à praia. Não está caminhando sobre as águas - ah, nunca faria isso depois que há milênios já andaram sobre as águas - mas ninguém lhe tira isso: caminhar dentro das águas. Às vezes o mar lhe impõe resistência puxando-a com força para trás, mas então a proa da mulher avança um pouco mais dura e áspera.

E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água , e sal e sol. Mesmo que o esqueça daqui a uns minutos, nunca poderá perder tudo isso. E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos escorridos são de náufrago. Porque sabe - sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano.


A QUINTA HISTÓRIA

Este conto descreve com muito humor e certa dose de suspense, experiências sobre o extermínio de baratas. Relata uma história, a de como matar baratas, em cinco versões, o que leva ao questionamento sobre as muitas formas de narrar um fato, o que incluir, o que excluir, e como um mesmo fato pode originar histórias muito diferentes. Nesse conto, encontra-se a reflexão sobre o fazer literário que acompanha os contos de Clarice Lispector.

A narradora conta que se queixou a uma vizinha de que subiam no seu apartamento as baratas que vinham do térreo. Então a vizinha lhe deu a seguinte receita para matar as baratas: misturar em partes iguais açúcar, farinha e gesso. “A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de-dentro delas”. Assim foi feito e as baratas morreram.

Como vimos, Clarice Lispector desdobra quatro ou cinco vezes uma historieta banal. Trata-se, em certo patamar, exatamente do mesmo fato, deflagrado sempre pela da mesma queixa contra baratas.

Contadas diversamente, cada versão dos mesmos fatos se transforma efetivamente em outra história, conforme indicam os títulos que a autora sugere: “Como matar baratas”, “O assassinato” e “Estátuas”. A quarta história não tem nome, mas insere uma mudança real: a substituição da técnica artesanal para matar baratas por recursos industriais, marcando a passagem do vício à virtude. Já a quinta história, que batiza o conto, se chamaria “Leibniz e a transcedência do amor na Polinésia”. Ao contrário da anterior, a respeito desta sabemos apenas o nome e que começa com a mesma fatídica frase – que, por sua vez, é a última do conto: “Queixei-me de baratas”.

O mecanismo de "A quinta história", onde um único relato é reiniciado várias vezes, até que, estabelecido o mecanismo, o narrador abandona o texto, sugerindo que este continuará se repetindo por inércia, é tão explicito, que insinua uma intenção demonstrativa.

Entre uma e outra versão do mesmo relato, encontramos uma baratinha desesperada ante a morte não apenas irremediável, mas iminente. Ela tem as antenas brancas, sujas do pó branco usado pela narradora para matar baratas, uma mistura de farinha, açúcar e gesso – "A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de dentro delas" – e grita desnorteada – "é que olhei demais para dentro de mim!".

Esta imagem guarda certa literalidade: suas antenas estão brancas, exatamente por ela ter revolvido o veneno preparado pela escritora: um amálgama de substâncias que, ingerido, se alojada em seu estômago e a matará. Não se pode negar que a barata, se não “olhara”, pelo menos tocou aquilo que, mediante a ingestão, passara a constituí-la internamente. Ver e comer são a mesma coisa, e, uma vez que a distância requerida para que o olho diferencie os objetos uns dos outros fora absorvida, ou melhor, devorada – o indistinto abarca tudo.

Leia o conto na íntegra:

Esta história poderia chamar-se “As Estátuas”. Outro nome possível é “O Assassinato”. E também “Como Matar Baratas”. Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.

A primeira, “Como Matar Baratas”, começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que misturasse em partes iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de-dentro delas. Assim fiz. Morreram.

A outra história é a primeira mesmo e chama-se “O Assassinato”. Começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra o assassinato. A verdade é que só em abstrato me havia queixado de baratas, que nem minhas eram: pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício até o nosso lar. Só na hora de preparar a mistura é que elas se tornaram minhas também. Em nosso nome, então, comecei a medir e pesar ingredientes numa concentração um pouco mais intensa. Um vago rancor me tomara, um senso de ultraje. De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranqüila. Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me guiavam. Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a gente, cansada, sonha. E eis que a receita estava pronta, tão branca. Como para baratas espertas como eu, espalhei habilmente o pó até que este mais parecia fazer parte da natureza. De minha cama, no silêncio do apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma até a área de serviço onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no varal. Acordei horas depois em sobressalto de atraso. Já era de madrugada. Atravessei a cozinha. No chão da área lá estavam elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em nosso nome, amanhecia. No morro um galo cantou.

A terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. Começa dizendo que eu me queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora. Vai indo até o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda sonolenta atravesso a cozinha. Mais sonolenta que eu está a área na sua perspectiva de ladrilhos. E na escuridão da aurora,um arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca. Sou a primeira testemunha do alvorecer em Pompéia. Sei como foi esta última noite, sei da orgia no escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras — subitamente assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava! — essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te... Elas que, usando o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja de branco, terá adivinhado tarde demais que se mumificara exatamente por não ter sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: “é que olhei demais para dentro de mim! é que olhei demais para dentro de...” — de minha fria altura de gente olho a derrocada de um mundo. Amanhece. Uma ou outra antena de barata morta freme seca à brisa. Da história anterior canta o galo.

A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Vai até o momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho para os canos, por onde esta mesma noite renovar-se-á uma população lenta e viva em fila indiana. Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal? - como quem já não dorme sem a avidez de um rito. E todas as madrugadas me conduziria sonâmbula até o pavilhão? - no vício de ir ao encontro das estátuas que minha noite suada erguia. Estremeci de mau prazer à visão daquela vida dupla de feiticeira. E estremeci também ao aviso do gesso que seca: o vício de viver que rebentaria meu molde interno. Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem “adeus”, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou minha alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de virtude: “Esta casa foi dedetizada”.

A quinta história chama-se “Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia”. Começa assim: queixei-me de baratas...


ENCARNAÇÃO INVOLUNTÁRIA

A narradora tem o hábito de, quando vê uma pessoa que nunca viu, observá-la e encarnar-se nela, para poder conhecê-la.

Certa vez, num avião encarnou-se numa missionária. Durante toda a viagem e alguns dias em terra, assumiu o “ar de sofrimento-superado-pela-paz-de-se-ter-uma missão”.

A narradora levanta a hipótese de nunca ter sido ela mesma senão no momento de nascer, e o resto tinha sido encarnações. Depois ela afirma que não, que ela é uma pessoa. “E quando o fantasma de mim mesmo me toma – então é um encontro de alegria, uma tal festa, que a modo de dizer choramos uma no ombro da outra”.

Uma vez, também em viagem, ela encontrou uma prostituta perfumadíssima que fumava entrefechando o olhos e estes ao mesmo tempo olhavam um homem que já estava sendo hipnotizado. Então, a narradora fez o mesmo. “Mas o homem gordo que eu olhava para experimentar e ter a alma da prostituta, o gordo estava mergulhado no New York Times. E meu perfume era discreto demais. Falhou tudo”.

Leia o conto na íntegra:

Às vezes, quando vejo uma pessoa que nunca vi, e tenho tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhecê-la. E essa intrusão numa pessoa, qualquer que seja ela, nunca termina pela sua própria auto-acusação: ao nela me encarnar, compreendo-lhe os motivos e perdôo. Preciso é prestar atenção para não me encarnar numa vida perigosa e atraente, e que por isso mesmo eu não queira o retorno a mim mesmo.

Um dia no avião...ah, meu Deus - implorei - isso não, não quero ser essa missionária!

Mas era inútil. Eu sabia que, por causa de três horas de sua presença, eu por vários dias seria missionária. A magreza e a delicadeza extremamente polida da missionária já haviam me tomado. É com curiosidade, algum deslumbramento e cansaço prévio que sucumbo à vida que vou experimentar por uns dias viver. E com alguma apreensão, do ponto de vista prático: ando agora muito ocupada demais com os meus deveres e prazeres para poder arcar com o peso dessa vida que não conheço- mas cuja tensão evangelical já começo a sentir. No avião mesmo percebo que já comecei a andar com esse passo de santa leiga: então compreendo como a missionária é paciente, como se apaga com esse passo que mal quer tocar o chão, como se pisar mais forte viesse prejudicar os outros. Agora sou pálida, sem nenhuma pintura nos lábios, tenho o rosto fino e uso aquela espécie de chapéu de missionária.

Quando eu saltar em terra provavelmente já terei esse ar de sofrimento-superado-pela-paz-de-se-ter-uma-missão. E no meu rosto estará impressa a doçura da esperança moral. Porque sobretudo me tornei toda moral. No entanto quando entrei no avião estava tão sadiamente amoral. Estava, não, estou! Grito-me eu em revolta contra os preconceitos da missionária. Inútil: toda a minha força está sendo usada para conseguir ser frágil. Finjo ler uma revista, enquanto ela lê a Bíblia.

Vamos ter uma descida curta em terra. O aeromoço distribui chicletes. Ela cora mal o rapaz se aproxima.

Em terra sou uma missionária ao vento do aeroporto, seguro minhas imaginárias saias longas e cinzas contra o despudor do vento. Entendo, entendo. Entendo-a, ah, como a entendo e ao seu pudor de existir quando está fora das horas em que cumpre sua missão. Acuso, como a missionariazinha, as saias curtas das mulheres, tentação para os homens. E, quando não entendo, é com o mesmo fanatismo depudorado dessa mulher pálida que facilmente cora à aproximação do rapaz que nos avisa que devemos prosseguir viagem.

Já sei que só daí a dias conseguirei recomeçar enfim integralmente a minha própria vida. Que, quem sabe, talvez nunca tenha sido própria, se não no momento de nascer, e o resto tenha sido encarnações. Mas não: eu sou uma pessoa. E quando o fantasma de mim mesma me toma - então é um tal encontro de alegria, uma tal festa, que a modo de dizer choramos uma no ombro da outra. Depois enxugamos as lágrimas felizes, meu fantasma se incorpora plenamente em mim, e saímos com alguma altivez por esse mundo afora.

Uma vez, também em viagem, encontrei uma prostituta perfumadíssima que fumava entrefechando os olhos e estes ao mesmo tempo olhavam fixamente um homem que já estava ficando hipnotizado. Passei imediatamente, para melhor compreender, a fumar de olhos entrefechados para o único homem ao alcance da minha visão intencionada. Mas o homem gordo que eu olhara para experimentar e ter a alma da prostituta, o gordo estava mergulhado no New York Times. E meu perfume era discreto demais.

Falhou tudo.


DUAS HISTÓRIAS A MEU MODO

A narradora relembra duas histórias, que ela escrevera para se divertir, dando ao autor imaginário o nome de Marcel Aymé.

Félicien era um vinicultor francês que produzia o melhor vinho da região, mas não gostava de vinho. Ele e a mulher Leontina escondiam de todos esse fato. Félicien costumava até fingir-se de alcoolizado para esconder que não bebia vinho.

Então o narrador imaginário, Aymé, pára essa história e em Paris conta sobre Etienne Duvilé.

Duvilé, funcionário público em Paris, pobre, que gosta de mesa farta e vinho, e não as tem.

Sua realidade era uma família grande que sonhava com mesa farta e ele, com vinho. Depois do sonho de uma noite de sábado, a sede de vinho piorou.

Ele passou, acordado, a querer não só beber vinho mas beber todo o mundo.

Tinha uma sede tamanha que quase mata o sogro parasita. Duvilé enlouquece e no sanatório só bebe água. Até hoje ele está internado num hospício, tratado com água mineral “que estanca sedes pequenas e não a grande”. Enquanto isso, Félicien pegou gosto pelo vinho.

O PRIMEIRO BEIJO

O texto se encontra na terceira pessoa, o autor narra a história do pequeno rapaz que havia tido sua primeira experiência com o sexo oposto, mesmo que de uma forma surreal.

O autor não se introduz na história, a narra analisando todos os acontecimentos como se estivesse ao lado do protagonista.

Podemos dizer que a realidade do conto consiste na paixão do rapaz por sua primeira namorada, e no ciúme dela. Podemos também entender como real, a dúvida que o menino tem quanto a sua experiência com a estátua.

A dúvida é o sentimento mais presente em toda a construção da narrativa. Talvez a necessidade que o menino estava de beber água o tenha feito sonhar um pouco mais. O encontro dos lábios do menino com os lábios da estátua da mulher nua, despertou sensações que até então não havia conhecido. O fazendo vivenciar experiências marcantes para sua vida como homem.

Neste conto de Clarice Lispector, ela evoluiu como elemento principal a estátua da mulher, que da base para todo o transcorrer do conto, para todo o contexto irreal do conto.

Em "O Primeiro beijo", a autora apenas narra uma situação da qual não fez parte diretamente.

Um rapaz conta para sua namorada que já havia beijado outra mulher. Numa excursão de ônibus escolar, ele estava com muita sede. Quando houve uma parada perto de um chafariz, ele foi o primeiro a chegar para beber. Colou a boca no orifício de onde jorrava a água. Depois que se saciou, abriu os olhos e viu que o orifício era a boca de uma estátua de mulher nua. Afastou-se, ficou olhando para a estátua. Fora seu primeiro beijo. “Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva. (...) Ele se tornara um homem.”

Fonte: http://www.passeiweb.com

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